Maconha começa a perder o status de 'erva maldita' Uruguai iniciou inédito cadastramento para a venda do produto nas farmácias

Katell ABIVEN e Mauricio RABUFFETTI
da Agência France-Presse

Publicação: 06/05/2017 03:00

Cadastro: Interessados como Bruno (foto maior) tiveram que deixar impressões digitais no processo para garantir o direito de compra da droga. Comprovante dos correios não identifica o portador (Miguel Rojo/AFP | Pablo Porciuncula/ AFP)
Cadastro: Interessados como Bruno (foto maior) tiveram que deixar impressões digitais no processo para garantir o direito de compra da droga. Comprovante dos correios não identifica o portador

Montevidéu - O Uruguai iniciou o cadastramento dos consumidores de maconha legalizada, produzida por particulares sob controle do Estado, no passo final para a implementação da regulamentação total do mercado de cannabis. “É um passo grande na evolução como cidadão; o Uruguai está inovando, vamos ver se isto dá resultados”, opinou Marcos Ferreira, de 41 anos, funcionário do setor turístico, ao terminar seu processo de registro na agência central dos correios, localizada na central Cidade Velha de Montevidéu.

Antes da abertura do local, Yamila, de 26 anos, que trabalha em uma loja, era a primeira na fila para o registro. O mecanismo de venda em farmácias, previsto em uma lei aprovada em 2013, “é melhor, mais eficaz e mais seguro”, disse. “Antes, se procurava maconha em qualquer lugar e você não sabia o que estavam te dando”, apontou. Além disso, a droga legalizada “custa menos da metade do que no mercado negro”, acrescentou Yamila, que não quis dar seu sobrenome.

O preço da grama da maconha em farmácias locais será de US$ 1,30, e cada consumidor terá direito a comprar até 10 gramas por semana para uso recreativo. O Uruguai aprovou em 2013 uma lei de Regulamentação da Cannabis, que habilita três mecanismos para obter legalmente a droga: o autocultivo residencial, o cultivo cooperativo em clubes e a venda da maconha produzida por entes privados controlados pelo Estado através de farmácias, última etapa que resta para implementar em 100% a norma. Os consumidores devem optar por um mecanismo à sua escolha.

O governo espera que em 60 dias a maconha produzida por duas empresas privadas em terrenos públicos com segurança perimetral estatal esteja disponível para comercialização, em um mecanismo inédito que, segundo as autoridades, está destinado a combater o tráfico ilícito.

REGISTRO
O procedimento de registro é simples. Apesar de alguns problemas técnicos no início, as inscrições se realizavam normalmente nas agências dos correios visitadas pela AFP. O consumidor deve apresentar seu documento de identidade e um comprovante de residência. Os funcionários registram os interessados sem pedir cópias dos documentos, e tomam suas impressões digitais.

Após um questionário para traçar o perfil do comprador, lhe entregam dois comprovantes nos quais não aparecem o nome nem dados da identidade, apenas um “número de cliente” e a menção “registro de cannabis”. O documento indica: “Você se registrou como pessoa adquirente (de maconha) sob a lei N°19.172”, e deixa um telefone de consulta “sobre uso problemático de drogas”. O governo uruguaio lançou, paralelamente à abertura do registro, uma campanha de conscientização sobre o impacto do consumo de drogas na saúde.

“No mês de julho vai se fornecer a cannabis nas farmácias. O consumidor vai ter certeza da qualidade do produto que está consumindo e, assim, os riscos (associados a consumir cannabis no mercado ilegal) vão diminuir bastante"
Juan Andrés Roballo, pró-secretário da Presidência e presidente da Junta Nacional de Drogas

Medo do turismo canábico

Desde o lançamento desta iniciativa, em 2012, as autoridades do partido do governo Frente Amplio (esquerda) afirmaram que buscariam impedir o chamado “turismo canábico”, ou seja, a chegada de estrangeiros que querem consumir a maconha produzida pelo Estado. Para isso, a regulamentação da lei da maconha estabelece que só cidadãos uruguaios ou residentes no país podem ter acesso ao mecanismo.

Manuel Martín, cidadão espanhol e uruguaio de 30 anos, foi um dos primeiros a chegar para se registrar. Para ele, a lei foi “um ponto de inflexão” que o levou a decidir morar no Uruguai. “É uma bênção de Deus que estejamos aqui e que possamos nos registrar. (...) Vim da Espanha exclusivamente por isso”, disse. “Agora ainda se pode comprar nas farmácias”, com um “controle de qualidade”, e as pessoas não precisarão mais ir “para as ruas comprar qualquer coisa”. “Se for possível comprar 24 horas por dia, será um sucesso”, conclui.

Ferreira, o funcionário do setor turístico, se declarou a favor de que os visitantes possam comprar cannabis, algo que a regulamentação da lei impede. Em sua opinião, seria uma fonte de renda extra para o país. A AFP pôde falar na rua com os consumidores que foram se registrar, mas um dos seus jornalistas foi expulso da agência central dos correios pela Polícia porque a imprensa - segundo os funcionários presentes - não está habilitada a entrar no local por determinação das autoridades dos correios.

Tráfico não perdeu força

O Diretor Nacional de Polícia do Uruguai, Mario Layera, disse que a legalização da maconha, aprovada em 2013, não implicou diretamente na queda do tráfico desta droga e que o narcotráfico aumentou o número de assassinatos. “No ano passado tivemos os níveis históricos mais altos de confisco no país proveniente de outra região. Por isso, entendemos que o tráfico para o Uruguai não se ressentiu de maneira notável”, comentou Layera em entrevista à rádio El Espectador, sobre a vigência da lei.

Em dezembro, a Brigada de Narcóticos indicou que a droga mais confiscada em 2016 foi a maconha, chegando a 4,305 toneladas até 18 de dezembro, sendo que em 2015 havia sido de 2,52 toneladas. Layera também sustentou que, pelo tráfico de drogas constatado nos últimos tempos, houve um aumento “dos níveis de crimes e homicídios”. “O aumento da taxa criminal, que medimos de 2005 em diante, foi crescendo com base nos fenômenos de oferta e consumo de drogas”, indicou.

Nos últimos anos a polícia verificou o aumento de assassinatos, principalmente de homens jovens, que em muitos casos se tratavam de ajustes de contas entre pessoas ligadas ao tráfico.

Layera também falou que há autoridades ameaçadas por conta das novas estratégias e medidas aplicadas para combater o crime organizado. “Várias autoridades do Ministério do Interior foram ameaçadas além de juízes, procuradores e algumas personalidades dos Direitos Humanos”.

Outros países

Israel
O comitê ministerial de Israel aprovou em fevereiro um projeto de lei para legalizar a exportação de cannabis para uso medicinal. A adoção do texto por este comitê, que reúne parte dos ministros do governo, significa que o projeto agora poderá ser referendado pelo governo, mas ainda não foi divulgada nenhuma data para uma primeira leitura. Embora o uso recreativo da cannabis seja proibido em Israel, nos últimos 10 anos seu uso terapêutico foi não só permitido, mas encorajado. Em 2015, os médicos prescreveram a erva para cerca de 25.000 pacientes que sofrem de câncer, epilepsia, estresse pós-traumático e doenças degenerativas.

Argentina
O Senado argentino transformou em lei, em março, o uso da maconha com fins medicinais, projeto que tinha sido aprovado em novembro passado pela Câmara dos Deputados. Em um rápido trâmite sem debate e por unanimidade o projeto foi aprovado com 58 votos no plenário do Senado, com a presença de um grupo de mulheres com filhos doentes, que começaram a chorar. A norma busca “garantir o acesso gratuito ao óleo de cannabis e outros derivados” da planta, a todos os pacientes que sejam incorporados a um programa nacional para o estudo e a pesquisa do uso da cannabis. A iniciativa impulsiona a produção pública da maconha e permite importar o óleo para os pacientes com indicação médica, mas não contempla o cultivo pessoal.

México

A Câmara dos Deputados do México aprovou em abril uma lei que permite o uso medicinal e científico da maconha, assim como a sua produção e distribuição para estes fins, em um país duramente golpeado pela violência do narcotráfico. Agora será possível semear, cultivar, colher, preparar, adquirir, possuir, comercializar, transportar, fornecer e usar o cannabis com fins médicos e científicos. A Secretaria de Saúde deverá elaborar políticas públicas que regulem o uso medicinal dos derivados farmacológicos do cannabis, entre os quais está o tetrahidrocannabinol, seus isômeros e variantes estereoquímicas, assim como normatizar a pesquisa e a produção nacional dessas substâncias, segundo a peça legislativa.

Canadá
O governo de Justin Trudeau apresentou em abril um projeto de lei para legalizar a maconha em pouco mais de um ano, transformando o Canadá no segundo país do mundo a autorizar seu uso recreativo, depois do Uruguai. No Canadá, o consumo de maconha é permitido com fins medicinais desde 2011 e ele seria o primeiro país do G7 a autorizá-lo com fins recreativos. Essa legalização, que pode coincidir com o dia da festa nacional, 1º de julho de 2018, é apoiada pela maioria dos canadenses, mas seu debate parlamentar nos próximos meses deve ser intenso. Especialistas recomendam que os indivíduos possam cultivar até quatro plantas e portar até 30 gramas de maconha.