ENTREVISTA // ROBERTO MONTEZUMA » 'O Recife não cabe mais no município' O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo chama atenção dos gestores municipais para a importância do Estatuto das Metrópoles, que deve ser implantado até 2018

Tânia Passos| taniapassos.pe@dabr.com.br

Publicação: 10/09/2016 03:00

 (Paulo Paiva/DP)
O conceito de gestão metropolitana, comum em outros países, deve se tornar realidade nas metrópoles brasileiras com o novo Estatuto das Metrópoles aprovado em 2015. O prazo para implantação do modelo de gestão é até 2018, mas até agora o novo modelo não entrou na agenda de debate dos candidatos a prefeito. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-PE) lançou, na última semana, a publicação denominada Cadernos, uma espécie de cartilha do Estatuto da Metrópole para orientar os gestores a implantar a chamada governança metropolitana, que prevê a eleição de um gestor metropolitano entre os prefeitos das cidades da metrópole. O objetivo é colocar em ação um plano metropolitano de longo prazo.

De acordo com o estatuto, todos os municípios são iguais e o desafio é justamente ter a visão estadista a partir da lógica metropolitana. O presidente do CAU-PE, Roberto Montezema, ressalta o poder político e econômico da metrópole. No caso de Pernambuco, a Região Metropolitana do Recife (RMR) concentra o maior Produto Interno Bruto (PIB) do estado e a maior população, cerca de 4 milhões de habitantes.

Nesta entrevista, Roberto Montezuma, que é graduado em arquitetura pela Universidade Federal de Pernambuco (1983), com especialização em Social Housing pela Architectural Association School of Architecture (1985), e está à frente do CAU desde 2012,  diz que é fundamental deixar como legado o protagonismo dos urbanistas no planejamento das cidades.

A cidade é maior invenção do homem junto com a escrita. Em que momento nós erramos no planejamento das cidades?
Ao mesmo tempo que é a maior invenção do homem, ela talvez seja a mais complexa. Ela nunca é um ente acabado. Ela está sempre em ação e transformação.E isso faz da cidade fascinante e ao mesmo tempo não há domínio. Por isso, ela precisa estar constantemente em processo de planejamento e, em alguns momentos, ser até reinventada. Chega um momento que ela colapsa e não se adequa mais ao modelo real. E hoje o Recife está passando por isso. O Recife foi inventado no século 17. Já existia como Porto mas, com a vinda dos holandeses, e eles tiram o poder político de Olinda e  transformam o Recife num lugar inovador. O Recife nasce sob a ótica de uma cidade moderna nas águas. E com um plano de enfrentamento das águas. O que acontece é que, a partir do século 20, todos os planos que surgiram vieram contrários ao enfrentamento das águas e acabou-se criando uma cidade que se opôs às águas, com aterramentos e visão rodoviária. A partir disso, deu às costas para as águas. A malha viária não conversava com essa árvore da'água. Na visão aérea, ela parece uma árvore com seus rios e canais espalhados. O desafio do século 21 é reinventar essa metrópole e transformá-la numa escala de metrópole.

De que forma essa percepção da escala enquanto metrópole pode ser efetivada?
O Recife não cabe mais no município. É um todo contínuo junto com as cidades que compõem a metrópole. As ruas continuam, o lixo se mistura, a água é compartilhada. Ela não se resolve mais em nada. Aí é que está o conflito da atualidade. Ela tem que se reinventar como metrópole. Esse é o grande desafio e aí ela entra em outros planos de desenvolvimento. E não é de mero crescimento, mas de desenvolvimento. O Estatuto da Metrópole já está nessa direção.

Qual avanço que nós tivemos com o Estatuto da Metrópole?
O grande avanço até agora é que passamos a ter uma lei. Que passou a ser realidade em 2015. Num embate imenso para transceder o Estatuto da Cidade para o Estatuto da Metrópole. O Estatuto da Cidade veio antes e depois foi visto que ele era falho nessa questão metropolitana. O Estatuto da Metrópole oferece ferramentas para esta transformação. A metrópole tem a maior renda per capita de Pernambuco e mais de 50% da população do estado está no Recife e Região Metropolitana.

Como deve funcionar a logística metropolitana?
Existem três paradigmas para fazer essa transformação. O primeiro passo é seguir a lei do estatuto e criar a governança metropolitana, que irá governar toda a área metropolitana com interesses comunitários sob a ótica inteira. Significa que, pelo consórcio, todos os municípios são iguais, como ocorre com a União Europeia, em um interesse único. Na hora que se estabelece essa governança vem a parte dois: o plano metropolitano, estratégico e transformador. Porque ele vai lidar só com os interesses da metrópole. Um interesse uno. Por isso, o governador da metrópole pode ser substituído em um espaço de tempo, que pode ser de um ou dois anos. Ele tem que ter a visão estadista e ter a preocupação apenas com a metrópole. O governante pode ser um dos prefeitos, mas a estratégia tem que ser metropolitana. Feito isso, essas cidades que estão ao redor vão fazer seus planos integrados ao plano da metrópole.Não deve haver um plano de mobilidade municipal, ele tem que estar condicionado ao plano da metrópole inteira. E aí muda-se a escala, que agora é da percepção, da aproximação, da integração pela diferença, mas isso não quer dizer que a visão da luta coletica não permaneça. Essa cidade metropolitana pode eleger dentro das prioridades do plano, por exemplo o arco metropolitano como prioridade, que vai irrigar todo esse território. O interesse é da metrópole e ela tem o maior PIB do estado. Ela pode inclusive bancar um terço da execução disso e a outra parte captar junto a Brasília o restante. Veja o poder que a governança metropolitana passa a ter na transformação. Ou seja, com o arco metropolitano será possível mudar e reorganizar todo o fluxo terrestre. Pode ser desenhado como uma artéria de desenvolvimento.

E qual o terceiro paradigma?
O terceiro ponto é o monitoramento cidadão. Nós não teremos transformação se não houver o empoderamento do cidadão. A sociedade civil organizada e, nesse ponto, incluímos também o CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) como um dos atores nesse processo. E a partir daí, são criadas fases e metas. Ou seja, deixa de ser um plano de governo e passa a ser um plano de transformação. Deixa de ser um mero plano de governo de quatro anos e passa a ser um plano de longo prazo. E esse plano de longo prazo já existe, que é o Recife 500 anos. O Recife será a primeira capital a fazer 500 anos. Na nossa visão, isso vem como uma luva. E nós, urbanistas e arquitetos, precisamos ser participantes desse protagonismo do desenvolvimento.

O que é preciso fazer para colocar esse estatuto em ação? Falta alguma lei?
Não precisa mais nada. A lei já existe. E ela é para ser implantada até 2018. Do contrário, pode acarretar em uma ação contra o governante. Estamos com a faca e o queijo na mão. Nunca tivemos antes todas essas ações em alinhamento. Do ponto de vista de instrumento, já está tudo pronto. O que precisa é o empoderamento do cidadão para cobrar essa implantação. Hoje as metrópoles estão sem rumo. A rua é iluminada aqui de uma forma e, quando chega na cidade vizinha, é de outra. O lixo daqui é despejado lá.

Esse conceito de metrópole já funciona em outros lugares, mas mesmo com o estatuto ainda parece distante da nossa realidade.
Roma, Paris, Amsterdã implantaram e Barcelona fez isso há 150 anos. O fenômeno que Barcelona é tem como base o plano estratégico de 150 anos e hoje é uma referência mundial. Eles foram executando ao longo dos anos. Hoje toda a malha viária dispõe de uma rede no solo com espaço definido do esgoto, da fiação elétrica, dos cabos de fibra óptica. Tudo foi planejado. Nós temos aqui a PPP do saneamento e ela não deveria existir. A lógica é a infraestrutura a partir de um plano urbanístico metropolitano e não intervenções isoladas.

O CAU lançou a publicação Cadernos, que explica em linhas gerais o papel do Estatuto Metropolitano. A ideia é apresentar aos prefeitos?
Nós vamos entregar uma carta aos candidatos a prefeito e vereadores explicando a importância da implantação do Estatuto Metropolitano. Esperamos que na próxima semana esse material esteja consolidado. O CAU reforça essa visão estratégica para desmistificar e também levantar essa bandeira junto à população. Nós do CAU-PE já temos material para debater. Nós dispomos de uma minuta bastante detalhada a partir de experîencia em outros lugares, mas que no debate será enriquecida com a realidade local.