"Em maio de 68, nós tomamos a palavra" Historiador e sociólogo francês analisa movimento mundial que catalisou mudanças e é tema de exposição no IRB

Anamaria Nascimento
anamaria.nascimento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 21/07/2018 03:00



Até este domingo, o Instituto Ricardo Brennand recebe a exposição No coração de Maio de 68,  que reúne 43 fotografias e dois documentários sobre esse capítulo da história na França. As obras compõem um projeto liderado pela Associação dos Amigos de Philippe Gras e pela produtora Quatro Planetas Filmes e conta com o apoio do Institut Français do Brasil, Consulado Geral da França em Recife, Cinemateca da Embaixada da França no Brasil, da Delegação Geral das Alianças Francesas do Brasil e da Aliança Francesa de Recife. A mostra foi inaugurada com um curso do historiador e sociólogo francês François Dosse. Em entrevista ao Diario, ele comentou que, cinco décadas depois, Maio de 68, apesar de o contexto daquela época ser diferente da situação atual do mundo, pode ensinar valiosas lições. “O que nos ensina o ano de 1968 é a necessidade de avançar para uma sociedade aberta, de reconstruir um possível futuro de emancipação”, afirmou. Ele também conversou sobre o Instituto de História do Tempo Presente, do qual é membro, e sobre o papel dos jornalistas e historiadores no combate às fake news.

 
 
Entrevista:
François Dosse // Historiador e sociólogo francês
 
Cinquenta anos depois, por que Maio de 1968 interessa tanto?
Foi um fato importante que deve ser lembrado como um evento internacional. Não foi na França que começou, mas nos campi dos EUA, na Califórnia, em oposição à Guerra do Vietnã, ao Japão e à Alemanha. No entanto, na França, culminou com o maior movimento social que o país conheceu (10 milhões de grevistas), levando a uma forma de vácuo de poder e a uma crise política. Este movimento de protesto foi, acima de tudo, um discurso de todos os cidadãos, especialmente dos jovens. Em maio de 68, nós tomamos a palavra, como em 1789 nós tomamos a Bastilha, como corretamente analisou Michel de Certeau. Este evento, no entanto, permaneceu um enigma e nós testemunhamos uma explosão de diferentes interpretações. Nesses 50 anos, surgiram sempre diversos livros, pesquisas e análises para tentar resolver esse enigma.

O que o Brasil, em ano de eleição e passando por uma crise política, pode aprender com Maio de 1968?
A situação de 2018 é muito diferente da de Maio de 68 no Brasil e na Europa. Desde a década de 1960, temos experimentado uma crise geral do futuro, do devir, da ausência de um projeto coletivo da sociedade, o que modifica significativamente nossa relação com o passado e dá origem ao desejo de muitas pessoas de se apegar à tradição, por medo. O que nos ensina o ano de 1968 é a necessidade de avançar para uma sociedade aberta, de reconstruir um possível futuro de emancipação. Para fazer isso, nesse contexto de trágica crise que todos estamos passando, marcada pela turbulência econômica, um aumento da exclusão, desemprego e abstinência, a ascensão do ódio ao outro, o racismo, é o disse Albert Camus em 1957, quando recebeu o Prêmio Nobel em Estocolmo: construir um novo mundo e impedir que nosso mundo, nossos valores, sejam destruídos (“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça”, disse Camus). Nesse sentido, maio de 68 continua sendo uma lição de democracia através da vontade expressa na participação política cidadã; na conquista da autonomia; na busca de um melhor controle sobre a própria vida e o desejo de estar junto em harmonia, respeitando as diferenças, permitindo a igualdade entre homens e mulheres e tendo a preocupação de preservar o ecossistema do planeta hoje em perigo. Podemos ver o que isso significa no Brasil diante dos riscos de voltar a uma ditadura que durou 20 anos, de 1964 a 1984. O ano de 1968 pode ser para o Brasil uma fonte de inspiração para evitar, como diz Michel Foucault, o fascismo que todos podem potencialmente carregar dentro de si e preservar uma sociedade democrática e aberta.

Recentemente, você ministrou um curso no Instituto Ricardo Brennand. Antes, havia participado de evento na Universidade Federal de Pernambuco. Como é a sua relação com o Recife?
Acabei criando uma relação especial e privilegiada com a cidade do Recife. É onde cheguei pela primeira vez ao Brasil, em 1995, convidado pela ANPUH (Associação Nacional de História) e voltei muitas vezes, a convite do Instituto Brennand, cuja atividade cultural é excepcional, especialmente nestes tempos de crise econômica. Devo muito a Nara Galvão, coordenadora das atividades do museu do Instituto Ricardo Brennand. Além disso, conheço colegas e estudantes apaixonados pela pesquisa, curiosos e ansiosos por conhecer o que um ambiente estimulante oferece. Então, é sempre um prazer visitar a cidade. Sem dúvidas, transmitir em um curto período de quatro dias, quatro períodos de quatro horas de curso, representa um esforço real para mim e para o público, mas sou motivado por um público cativado pelas questões teóricas e, assim, o ascetismo necessário é transformado em prazer.

O que é o Instituto de História do Tempo Presente e como analisar a história sem distanciamento?
O Instituto de História do Tempo Presente foi criado em 1978 e assumiu a função do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial. Foi criado e dirigido na época pelo historiador François Bédarida. É um laboratório do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique, maior órgão público de pesquisa científica da França e uma das mais importantes instituições de pesquisa do mundo), que foi liderado por muito tempo pelo historiador Henry Rousso e hoje por Christian Delage, especialista na relação entre história e cinema. O objetivo é analisar o que está acontecendo até hoje e isso ajudou a revalorizar a importância do testemunho oral e a inevitabilidade da memória, áreas que foram reprimidas em favor da fetichização do escrever, enquanto na Antiguidade Tucídides previa uma busca pela verdade que especifica o trabalho do historiador apenas a partir do momento em que os testemunhos orais pudessem atestá-lo. Você se pergunta se pode fazer história sem a distância do tempo: é claro. A história do tempo presente até muda a maneira pela qual devemos nos aproximar dos tempos mais antigos por meio da “defatalização” (termo que se refere a uma visão que visa a repensar os acontecimentos para evitar lógica causal simples, considerando o projeto do futuro como sempre aberto e claro, influenciado por muitos fatores aleatórios e um certo ‘horizonte de expectativas’ por parte das gerações vivas) do olhar, porque precisamos redescobrir a indeterminação do presente das sociedades do passado e esta é uma grande contribuição epistemológica da história da atualidade: encontrar a multiplicidade do campo de possibilidades.

Qual é a relação entre jornalismo e história do tempo presente?
Ambos os domínios estão próximos. Foi chamada pela primeira vez a história do presente de a história imediata. Não por acaso aquele com que a história imediata, na enciclopédia Nova História, em 1978, relaciona é o jornalista e grande repórter do Le Monde e do Nouvel Observateur, Jean Lacouture. Em comum, encontramos a mesma busca pela veracidade e por recontar o que aconteceu. Simplesmente, o historiador dará a dimensão simbólica, a espessura temporal, mais peso que o jornalista. O historiador Jacques Le Goff, que ajudou a montar este Instituto de História do Tempo Presente, teve como objetivo que os historiadores reivindicassem o campo da história contemporânea, abandonada pela Escola dos Annales (movimento historiográfico surgido na França, na primeira metade do século 20) e deixada aos jornalistas. A especificidade dessa história da atualidade é atravessar constantemente o presente e o longo prazo, a longa duração, para ver como o presente é inscrito, constantemente reconfigurado na espessura temporal. Ao mesmo tempo, há uma reaproximação com a mídia e com os jornalistas porque o evento moderno tem a mesma essência dos eventos midiáticos. Um evento é um evento graças aos meios de difusão que o trazem a público, despertando emoções e reações. Assim, o historiador da atualidade está na mesma posição do jornalista. Ele não pode prever o que vai acontecer, ele não conhece o epílogo, mas essa desvantagem se torna um ativo porque permite medir a complexidade do real e os limites dos esquemas reducionistas de causalidade. Já em 1978, Jean Lacouture notou que jornalistas e historiadores do mundo imediato estavam chegando cada vez mais perto. Em ambos os casos, é uma questão de conduzir a investigação e isso se refere à própria definição do que é a história.

A disseminação de notícias falsas pode comprometer a produção histórica do tempo presente?
Tem razão em fazer a pergunta da divulgação de notícias falsas, “fake news” que, na era do “ ao vivo”, da multiplicação das redes sociais, do imediatismo, não deixam de representar um desafio cada vez maior em relação à transmissão de informações honestas impulsionadas pela busca da verdade e da análise. Esse fenômeno, preocupante para a vida democrática, deve ser combatido com precisão pelos jornalistas e historiadores, enfatizando a questão da prova e da verdade como um contrato tácito entre eles e seu público. Isso se refere às próprias vertentes da disciplina histórica e da atividade jornalística: falar a verdade e, para fazer isso, conhecer as fontes, saber usá-las, o que implica o domínio de uma metodologia e ter um código de ética profissional impecável.