ENTREVISTA // LAURA PUJO » 'O embargo (dos EUA) ainda não acabou' Cônsul-geral de Cuba no Nordeste quer apoio de parlamentares e sociedade civil para derrubar o bloqueio norte-americano

Micheline Américo
ESPECIAL PARA O DIARIO

Publicação: 23/09/2017 03:00


A cônsul-geral de Cuba para o Nordeste, Laura Pujo, visitou Pernambuco, na última quarta-feira, cumprindo a missão de mobilizar apoios  de parlamentares e entidades da sociedade civil para derrubar o bloqueio norte-americano contra o país caribenho. Durante a entrevista, ela faz uma análise entre as flexibilizações do então presidente dos EUA, Barack Obama, até o endurecimento da atual administração de Donald Trump, a quem julga completamente desinformado e agressivo. Sobre o Brasil, espera que o acordo de cooperação entre os dois países seja mantido e que a posição brasileira na próxima Assembleia da ONU continue pelo fim do embargo.

Qual a sua missão diplomática nesta visita ao estado de Pernambuco?
Nós do Consulado Geral de Cuba para o Nordeste temos jurisdição e abrangência nos nove estados nordestinos e sempre visitamos cada um deles para conhecer o andamento das questões bilaterais que temos em cada um. Aqui, em particular, a presença dos médicos cubanos, as questões de relações econômicas comerciais que vêm tendo um avanço nos últimos anos com Pernambuco, e também tem a luta contra o fim do embargo norte-americano, aproveitando a campanha internacional, que acontece agora com a apresentação da resolução cubana pelo fim do bloqueio. Como a cada ano recebemos o respaldo da Organização das Nações Unidas (ONU) e de parlamentares do mundo todo, também venho aqui para solicitar esse apoio e para explicar que o embargo ainda não acabou, que Cuba ainda está lutando pelo seu fim.

Durante seu governo, o ex-presidente norte-americano Barack Obama promoveu um conjunto de flexibilizações para retomar as relações diplomáticas com Cuba após quase 60 anos de embargo. O que já avançou até então?
Realmente, durante o governo do Barack Obama foi um período completamente sui generis. Foi um momento de diferenciação com os outros governos norte-americanos, no caso da política. Não quer dizer que eles mudaram seu desejo de destruir a revolução cubana. Quer dizer que eles mudaram de estratégias e rapidamente adaptaram-se para criar uma nova condição na qual tivessem uma maior influência dentro de nosso país e pudessem efetivamente provocar uma transformação no sistema socialista cubano. Esse foi claramente o propósito e para nós foi muito bem-vindo, porque para obterem êxito teriam de necessariamente melhorar as condições econômicas do povo cubano, e essa é uma das nossas metas fundamentais: melhorar, dar prosperidade ao nosso povo. Já a briga política nós encaramos e ficamos bem à vontade para enfrentar esses desafios. Sabemos que seria uma luta diferente, mas não estamos preocupados com isso. Durante o governo de Obama foram estabelecidas as embaixadas, assinados muitos convênios de acordos bilaterais, em várias áreas de interesse comum. Sem dúvidas, essa mudança de atitude trouxe muitos benefícios na área comercial e no turismo, mas isso não quer dizer que o bloqueio foi eliminado, pois não houve uma mudança efetiva. Obama apenas sinalizou que eliminaria e deu passos.

E atualmente, como anda o processo de abertura no governo do atual presidente Donald Trump?
Já desde o início, antes mesmo da chegada de Donald Trump à administração norte-americana, nós imaginávamos que haveria uma mudança política. Trump vem afirmando que reverterá a política de Obama. Então, vemos que agora há uma atitude completamente diferente. Recentemente, o atual presidente proferiu um discurso completamente desinformado, agressivo e revelador de que não sabe do que está falando, demonstrando que desconhece totalmente o nosso país e o que povo cubano deseja. Essas atitudes radicais dele não são só com Cuba, e sim perante o mundo inteiro e não podem passar desapercebidas. Não temos medo dessas atitudes e sabemos bem como lidar com presidentes norte-americanos que não respeitam Cuba, que não querem ter nenhum intercâmbio ou aproximação com o povo cubano. Então sabemos bem como enfrentar esse desafio e não estamos nem um pouco preocupados.

Durante esses quase 60 anos de embargo, quais são os custos sociais e econômicos para o povo cubano?
A cada ano Cuba prepara um relatório composto por diferentes áreas e setores – documento que será apresentado esta semana – por meio do qual tentamos quantificar o prejuízo econômico que nós acumulamos anualmente por conta do bloqueio. Mas, eu acredito que os efeitos são evidentes quando você vai a Cuba e vê que a base organizacional está muito deteriorada, que as condições de vida do povo são bem difíceis, por conta dessa impossibilidade de nós nos desenvolvermos normalmente e de permanecermos sempre em uma economia de crise de subsistência praticamente. Então esse é o objetivo, manter o povo numa situação de desespero, provocar revoltas sociais, para derrocar o governo. Esse objetivo estreito que justifica a lei do bloqueio, foi assim que foi idealizado e implementado ao longo de mais de meio século. Então eu acredito que por esse lado nós não podemos dizer que o bloqueio não tem funcionado porque é evidente que o povo cubano não desfruta dos direitos humanos em sua integralidade. Mas ao mesmo tempo, apesar do bloqueio, temos conseguido desenvolver uma bela indústria tecnológica, temos um nível de educação muito alto, temos uma esperança de vida. Assim como qualquer país desenvolvido, garantimos a saúde, a educação e o alimento básico para toda a população, certamente com muita dificuldade. Não é o que nós queremos, não é o nosso modelo de país. O nosso modelo seria um país próspero, onde as pessoas não teriam que se preocupar tanto cada dia para sobreviver como em Cuba. Esse preço altíssimo que o povo cubano paga pela sua rebeldia de decidir ter um sistema político diferente, mais justo, mais humano, mais parecido com o nosso ideal de país, porque também temos uma história em Cuba que sai da própria guerra de independência. O que querem fazer é mostrar que Cuba não deu certo, que o socialismo não presta. E, eu digo, para você saber se o socialismo ou o tipo de sistema social que está implementado em Cuba funciona ou não você tem que nos dar a condição de mostrá-lo, e até agora sempre nos foi negado qualquer condição, não só no comércio mas também nós não podemos fazer transações em dólares, não podemos negociar com qualquer empresa que tenha mais de 10% de capital norte-americano, não podemos comprar aviões à Embraer, porque a empresa brasileira tem mais de 10% de peças produzidas por fábricas norte-americanas, por isso temos que comprar aviões da Rússia, de onde as peças demoram para chegar. Esses são apenas alguns exemplos, mas isso acontece em cada uma das facetas da sociedade e depois é muito fácil chegar a Cuba e dizer “Ah, mas se vocês tivessem uma sociedade capitalista a economia se dinamizaria e os seus problemas seriam resolvidos em cinco anos”, mas não é isso o que nós queremos. Sabemos muito bem o que é o capitalismo porque em Cuba já tivemos e não funcionava, não dava certo para nós. E, continuamos dispostos a enfrentar esse desafio.

uais são os termos da retomada das relações comerciais com os EUA propostos pelo governo cubano e as condições colocadas pelo governo norte-americano? Essa eventual aproximação significaria, em alguma medida, uma renúncia à construção do socialismo em Cuba?
Nós não temos nenhuma condição. Nós esperamos respeito à soberania nacional de Cuba e nós respeitarmos também a soberania nacional dos Estados Unidos. Nós não queremos que eles sejam socialistas para nos relacionarmos com eles. Inclusive, os termos que foram negociados com a retomada das embaixadas, o respeito da soberania, o Obama fazendo discursos em Cuba falando que o destino do povo cubano seria determinado por nós. Veja, isso poderia ser uma condição, mas nós não estamos bloqueando os EUA, não temos uma lei que proíba os cidadãos norte-americanos de visitar Cuba, pelo contrário, eles têm leis que proíbem seus compatriotas de visitarem Cuba, eles têm leis que proíbem o comércio com Cuba, nós não temos nada para dar em troca da eliminação dessas leis, nós não temos nenhuma lei bloqueando as transações com as empresas norte-americanas. Então, seria muito difícil a negociação entre uma nação do tamanho dos EUA, que está bloqueando unilateralmente uma nação pequena como Cuba e pensar que nós temos que dar alguma coisa em troca. O que? A liberdade? A independência? Isso não! Mas podemos escutar o que lhes interessa, que não seja mudar o nosso sistema político, a forma que nós queremos organizar o país, mas podemos ver que outras coisas eles podem requerer, inclusive, nós teríamos coisas para pedir, a devolução do nosso território ilegalmente tomado pelos EUA, Guantánamo, por exemplo, mas nós não pedimos. Falamos sobre isso, mas não era uma condição vinculante para uma negociação para de fato nós aceitarmos as embaixadas, mesmo quando ele continua ocupando ilegalmente o nosso território. O que estamos pedindo é o desbloqueio, e para isso eles só têm que assinar quatro ou cinco papéis, organizar um pouco a legislação. Isso poderia ser feito em 15 dias e não vai trazer nenhum prejuízo para a economia norte-americana. Muito pelo contrário. Estou certa de que as empresas norte-americanas se beneficiariam muito desse intercâmbio, por isso a opinião majoritária nos EUA é pelo levantamento do bloqueio. Não foi uma coisa pessoal de Obama, ele respondeu a esse chamado majoritário, da classe política e da classe econômica norte-americana, ou seja, dos empreendedores de lá que estão vendo que Cuba recebe 4 milhões de turistas e os EUA não pegam um dólar sequer de toda essa indústria turística que eles poderiam se beneficiar assim como se beneficiam da espanhola, da francesa, da portuguesa, enfim, eles simplesmente não querem intercâmbio com Cuba.

Como a senhora avalia o crescimento dessa onda de governos de direita ultraliberal no mundo, destacadamente na América Latina. Essa articulação entre esses países de alguma forma ameaça Cuba?
Acredito que o equilíbrio no continente mudou muito. A configuração política está mudando muito. Penso que todos os países são favoráveis à eliminação do bloqueio, os governos de direita e esquerda, todos concordam. Dos 193 da ONU com direito a voto, 191 deles votaram a favor do fim do bloqueio, só os EUA e Israel se abstiveram, nem sequer votaram contra. Neste ano, vamos ver o que acontece. Enquanto isso nós levamos a mensagem para toda a pátria, como eu estou aqui agora e outros amigos solidários também estão espalhando a mensagem de que vai acontecer esse voto e nós contamos com uma vitória contundente, na próxima assembleia da ONU sobre o assunto. Tal decisão deve ser respeitada porque esse mecanismo de concertação internacional, mesmo que pouco prestigiado pelo pouco caso que se faz dele, é o único que temos. Não existe outra alternativa. Então, os países precisam participar ativamente, como o Brasil faz, como Cuba faz, e exigir que se respeitem as resoluções emitidas pela mais democrática das nações, que é a Assembleia Geral das Nações Unidas.

A respeito da relação de parceria entre Brasil e Cuba, qual sua avaliação acerca da continuidade dos acordos de colaboração nesta atual conjuntura?
Nós manteremos nosso relacionamento com o Brasil. Sempre tivemos boas relações com as empresas brasileiras. Agora, montamos uma Feira Internacional de Havana, o segundo motivo pelo qual estou aqui, para fazer a promoção dessa participação. Todo ano tem um pavilhão só de empresas brasileiras e este ano também nas duas missões prospectivas e expositivas estão cheias de empresas que vão aproveitar essa oportunidade de negócio com o mercado cubano porque a economia se mantém. Mantemos a nossa intenção, o nosso desejo de dar continuidade a esse intercâmbio rico com o Brasil, que envolve mais de nove mil médicos trabalhando com o programa Mais Médicos. Nós vemos a diferença que faz o trabalho deles, honrando o compromisso com a ex-presidenta Dilma Rousseff, que com muita coragem implantou esse programa federal.