A regra é clara Peças clássicas vão além das passarelas e transformam a moda em ferramenta atemporal de resistência

Publicação: 01/10/2016 03:00

Câmera e ação: As modelagens amplas, listras e cores neutras ajudam a consolidar a imagem de mulher madura e resistente a modismos, tendências. Clara "compensa" o figurino clássico com cabelos longos e acessórios. (Victor Juca/Divulgacao)
Câmera e ação: As modelagens amplas, listras e cores neutras ajudam a consolidar a imagem de mulher madura e resistente a modismos, tendências. Clara "compensa" o figurino clássico com cabelos longos e acessórios.

O mundo tem ouvido falar sobre Clara. O apartamento de Clara, os discos de Clara, seus filhos, fantasmas, romances, conflitos. Mas é oportuno, ainda, falar sobre as roupas de Clara. Pantalonas, saias fluidas, tênis, mangas compridas, listras, maiôs, camisetas de botão. Clara é toda branco, preto, cinza, nude, marrom. Vez em quando, um pouco de vinho. Clara é protagonista de Aquarius, filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, encarnada pela atriz Sonia Braga.

O estilo clássico denota muito de sua personalidade: ela é a moda que resiste à moda. Clara lança mão de fotografias, mergulhos no mar, vinis e figurino sóbrio para resistir à passagem do tempo, aos modismos entranhados nas vitrines, nos filhos, nos empreendimentos da construção civil. Clara desfila a máxima de que os verdadeiros clássicos não saem de moda, esta última é que se curva aos primeiros.

Parte das peças usadas por Clara tem assinatura da estilista pernambucana Flávia Azevedo, criadora da grife local Club Noir. As pantalonas e saias pretas, ícones da marca, foram escolhidas pela figurinista de Aquarius, Rita Azevedo, para o guarda-roupa de Clara. Resgatam cor e modelagem clássicas. Flávia, conhecida por vestir arquitetas e empresárias recifenses, foco de seu público consumidor, adaptou as criações ao estilo mais despojado e alternativo da personagem - uma crítica musical aposentada.

A proximidade da praia (ela vive num apartamento à beira-mar de Boa Viagem) e a vida social low profile (discreta) de Clara foram os dois pontos básicos levados em consideração. A protagonista de Aquarius precisava ser solta, leve, em contraponto à sua tenacidade. “A personagem Cleide, amiga e advogada de Clara, se aproxima mais do perfil com o qual costumo trabalhar. Ela usa um vestido de jacquard da Club Noir numa cena do filme”, conta Flázia Azevedo.

Nos últimos dois anos, o minimalismo revigorado nas passarelas das principais semanas de moda colocou perfis como o de Cleide e Clara no centro das tendências. Peças de cores neutras e modelagens clássicas ganham força, são símbolos de resistência: refletem bandeiras atuais como o slow fashion (moda lenta, sustentável, contrária à produção em larga escala) e o consumo consciente.

Tornam possível uma cadeia ampla de combinações entre as mesmas peças, sem a necessidade de adquirir itens novos ou aderir a tendências do mercado em detrimento do próprio estilo. Nessa lógica, menos é mais, qualidade triunfa sobre quantidade.

“Com a internet, o ciclo da moda gira ainda mais veloz, e tudo se torna ultrapassado num piscar de olhos. Chamamos de clássicos da moda as roupas atemporais, que não têm validade e que vencem esses ciclos. Peças como saia lápis e um tubinho preto podem até ganhar novas versões, novos recortes, novos tecidos, mas continuam sendo ‘uma saia no modelo lápis’ e um ‘vestido com modelagem em tubo’, dois ícones da moda que sempre caem bem”, avalia a estilista pernambucana.

A associação de tecidos com texturas distintas e os acessórios com tons e tamanhos generosos tonificam o vestuário clássico, se ajustam bem ao minimalismo. Clara prova que sim.

Instagram
O minimalismo das peças clássicas ganha força nas redes sociais, em perfis como o da estilista Vic Hollo (@vicqueen, 137 mil seguidores), da digital influencer Débora Cechetto (@dcechetto, 122 mil seguidores), da modelo Cris Paladino (@prettamesmo, 52 mil seguidores) e das blogueiras Natana de Leon (@natanadeleon, 193 mil seguidores) e Julie Sariraña (@sincerelyjules, 3 milhões de seguidores). Elas combinam camisetas, cinturas altas, tênis confortáveis, acessórios metalizados, jeans básicos, batons nude."

Entrevista: Flávia Azevedo // estilista

 (Ricardo Fernandes/DP)

Como surgiu a proposta de ceder peças para o filme Aquarius? Quantas peças cedeu, como foi a recepção da atriz às roupas?

O convite surgiu da figurinista Rita Azevedo. Fiquei muito feliz com a proposta. Abrimos a loja e o nosso acervo para que ela selecionasse tudo que tinha a ver com as personagens. Rita vestiu a personagem Clara (Sonia Braga) com pantalonas e saias fluidas pretas. E também a personagem Cleide (Carla Ribas), advogada de Clara. Numa festa, Cleide usa um vestido tubo floral de jacquard, um clássico.

É possível manter-se fiel às peças clássicas e, ainda assim, estar antenada com as tendências das passarelas? De que forma?
Sim, sem dúvida. Podemos usar as tendências da passarela nos acessórios e adaptá-las à nossa realidade. Vamos tomar os tons metálicos como exemplo. Os metalizados estão na última moda. Certo? Então uso essa referência nas sandálias ou nos acessórios. Assim, estou na moda, usando a tendência que gosto, sem alterar meu estilo pessoal.

Vê a moda clássica como símbolo de resistência? Manter-se à parte de modismos seria, na sua opinião, a mais certeira das tendências?
Sim. Eu não acredito na moda que tem prazo de validade. Estou sempre por dentro das tendências, mas não uso essas referências datadas nas minhas coleções. Gosto que as clientes invistam em peças que durem anos.

Vê a moda como forma de expressão, construção de identidade?
A moda é o espelho da alma, e o reflexo dela é facilmente identificado pelas roupas. O estado de espírito e a personalidade ficam registrados nas escolhas dos modelos e cores. Mulheres extrovertidas, tímidas, sensuais... têm escolhas de modelos e cores completamente diferentes.

Quando criou a sua marca própria, Club Noir, já planejava desenvolver uma grife com proposta clássica, sóbria?
Sim. A Club Noir é o reflexo dessa mulher que eu admiro. Clássica, mas moderna e muito contemporânea. Eu sou alucinada por preto. Acho que uma mulher de preto está sempre bem vestida. Um jeans básico, uma blusa preta, uma boa bolsa e um bom sapato deixam uma mulher impecável. Não precisa de mais nada. Acho que a mulher deve estar sempre sofisticada e elegante, e as roupas pretas ajudam a compor esse tipo de visual.

Como reconhecer uma peça clássica? Quais as principais características que definem uma produção como clássica, sofisticada?
As peças clássicas vencem a barreira do descartável. Elas são usadas atualmente, foram usadas num passado distante e nunca sairam de moda. Nem sairão. Entre os principais exemplos de peças clássicas, estão a blusa de alfaiataria, a saia lápis, o vestido tubo, os sapatos do tipo scarpin. Uma produção clássica geralmente é composta por essas peças. Cores como o preto, branco, castanho e verde militar fazem parte dessa cartela que ultrapassa modismos.

Uma composição clássica é necessariamente sofisticada?
Geralmente sim. Mas é sempre bom lembrar que o oposto não é regra. Uma mulher sofisticada pode ser clássica ou não. Sofisticação, para mim, tem muito a ver com comportamento e comprimentos das peças. Uma mulher sofisticada usa fendas e decotes moderados, por exemplo. Ela pode ser fashion ou básica e, ainda assim, continuar sofisticada.