Democracia de cachorro doido

Helena da Rosa Borges
Escritora
helenarosaborges@hotmail.com

Publicação: 30/09/2014 03:00

Lá vem o pobre homem da feira, pés rachados, pernas ressequidas, olhos desalentados, trazendo no balaio carcomido, hortaliças e frutas salvas da seca, da natureza ofendida.

Na porta do casebre de palha ela espera. O que pode uma pobre mulher rodeada de filhos, cinco ao todo, esperar? A ansiada provisão, mandada dos céus para minorar a fome que dói.

Em volta da pequena mesa, que de mesa só se reconhece as pernas, braços raquíticos se empurram em vista de abocanhar o melhor para si.

O casal em fervor, pede silêncio, e reza: “Deus há de nos prover, amém!”.
Lá no arraiá, poucos quilômetros dali, em cima de um palanque, estrategicamente armado, iluminado, som nas alturas, coro unido das “clarcks”, sutilmente pagas por políticos ardilosos e aloprados.

Ouve-se os gritos, os berros, qual um TITÃ, de punhos cerrados para cima, em êxtase, promete e garante:

“Minha gente, votem em mim! Se eleito, ninguém mais passará fome nem sede, eu juro!”.

- Mãe, é ele, é ele, sim, prumode nós reza todo dia!
A pobre mulher, que de carne apenas lhe sobressaem os seios sugados, em sua chita desbotada, respira fundo, segue empurrando a multidão, na ânsia de tocar na mão do todo poderoso.

Ele, olhar enviesado como a fisgar a vítima, palavras ecoam qual flechas bem direcionadas, então suspende a minuscula mulher ao palanque e abençoa com um beijo estalado, exibindo visivelmente o nojo, o asco, sob um sorriso amarelo.

Retira do bolso o lenço de cambraia e o santinho, o passe para a Assembléia Legislativa e, segue, esfregando o rosto como se o livrasse do contágio da pobreza.
“Quê importa ao povo... Que as suas lágrimas sejam escarnecidas pelo barão do alto do seu castelo, ou pelo rebatador de cima de sua burra?...”

Tempo depois vai a mulher se fazendo acompanhar de Zezinho, o primogênito num pau-de-arara, aos solavancos sobre o barro ressequido e esburacado, com o santinho na mão, dedos alisando o tempo todo.

De rosto iluminado, pleno de satisfação, coração desordenado pela emoção que mal se continha, sonhava e rezava.

- Mãe, que baita de casa! Meu padim é importante, é rico. Bem que o Padim Ciço ouviu suas preces chorando.

De repente, aproveitando-se da distração do porteiro pra lá de emproado, emburacam de casa a dentro. Logo, logo, estancam, olhos espantados passeando pelo salão, em busca do procurado. E num misto de curiosidade e espanto, ouvem: “É isso mesmo, seu cabra, vai te f...!” Do outro lado, retruca outra pessoa: “Eu não tenho medo! Eu sou blindado! Deixa falar, deixa falar, ou não fale nunca mais! Entendeu?...”

Toca a campainha incessantemente exigindo de todos ali presente, o silêncio, o respeito maior à casa. Ameaças violentas continuam, um barulho de pancada como um murro dado em madeira, estronda e arrepia.

- O que é isso, Zezinho, pelo amor de Deus?!"

- Mãe, bem que o pai falou, que com aquele tár do beijo estalado, você podia pegá a doença de cachorro doido!

- Rrrrrrr... Rrrrrrr... Rrrrrr... Rrrrrr... E agora, Zezinho???