Da escova de engraxar sapato

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicação: 20/08/2022 03:00

A escova é de engraxar sapato. É minha e comigo está há exatamente cinquenta e quatro anos. Ou seja, desde que eu tinha dezesseis anos. Papai me deu quando vim estudar o curso clássico no Aracaju. A escova e uma lata de pasta preta. O destino era o engraxar o meu sapato, no que foi mui usada, anos e anos, até que resolvi aposentá-la, colocando-a em lugar especial no meu gabinete, como uma relíquia pessoal, a retratar em parte o espírito prático de papai. Esses anos todos, mais de meio século, a escova me acompanhou, de mudança em mudança, apartamento, casa, residência em três cidades, o cuidado de papai, ao me deslocar de Itabaiana para Aracaju, me ofertar uma escova de engraxar sapato, o que, por outro lado, me plantou o cuidado de legar aos sapatos o trato permanente a fim de deixar o couro sempre brilhando.

Cinquenta e quatro anos, portanto, me acompanhando nas estradas da vida. Se outros objetos se perderam na curva do tempo, se de outros tive de abrir mão e deixar no meio da caminhada, a escova, não, grudou-se, mesmo sem cola alguma, até lhe conceder a merecida alforria, aposentando-a da graxa e do sapato, alcançando-a a condição de peça de museu, do meu museu, colocando-a ao lado do óculos ray-ban de papai, de cor verde, que, só nos domingos, era usado, na sua peregrinação na praça, e, também, da bengala dos seus últimos meses de sua vida.  

A escova de engraxar sapato, desde muito, não tem mais serventia. Não seria justo mantê-la em atividade permanente. Aposentei-a, sem pedido e sem direito a proventos. Descansa calada à minha vista, com a primazia de ser o único objeto que carrego comigo desde os dezesseis anos, perdendo, aliás e apenas, para a carteira de dinheiro que, em 1958, homenageou os jogadores brasileiros que foram campeões do mundo, exibindo o retrato de todos eles, titulares e reservas. Essa, ressaltemos, a mais velha relíquia, com a tristeza de nunca ter sido usada à mingua de cédulas que nunca carregou. Já a escova está no seu canto, marcada pelo uso, quieta, sonhando, quiçá, em ser promovida a peça de museu de verdade, no que, não depende mais de mim.