Despedida

Publicação: 28/12/2015 03:00

Hoje, estou me despedindo. Preciso me recolher, para tentar reunir os estilhaços em que fui me despedaçando, e ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade. Aquilo que estou sentindo necessidade de tentar só é possível na solidão: peço que ninguém me dê nem sequer mais livros. Nem os melhores. Sobretudo os melhores. Talvez pareça o contraditório, mas sinto que somente me isolando é que poderei fazer alguma coisa por meu Povo. Aliás, não é nem uma decisão que estou tomando: como as serpentes que trocam de pele antiga por uma nova, de repente acordei mudado, sem saber nem por quê. A pele nova talvez seja até pior, mas está acima de minhas forças continuar carregando a antiga.

Já me dediquei à Literatura: escrevi romances, poemas, ensaios e peças de teatro. Procurei colaborar no campo das outras Artes e fazer o que me era possível pela Cultura brasileira, viajando, dando entrevistas, escrevendo, fazendo conferências, ajudando os mais moços, organizando concertos, exposições e espetáculos de vária natureza. Achava que a Cultura brasileira só se podia realizar como eu a sonhava dentro de uma Política que realmente se fundamentasse no Povo. Os líderes políticos da classe dirigente brasileira diziam concordar comigo. Depois, amargurado e perplexo, descobri aos poucos que, na verdade, eles não tinham nenhum apreço nem pela Cutlura nem pelo Povo brasileiro. Mas não desesperei: reagi, procurando reorientar a pouca ação de que sou capaz por um caminho que levasse em conta aquilo que descobrira, e meus artigos, aqui, foram um dos meios através dos quais tentei efetivar essa outra forma de participação.

Acertei em algumas coisas, errei em muitas outras. Mas Deus sabe que, quando errei, foi por ignorância ou incompetência e não por má-fé. Assim, não é que considere que não deva mais participar: é que do ponto de vista da ação, acho que já participei suficiente. Também não é que eu esteja agora estendendo a todos os políticos aquele amargo julgamento ao qual acabo de me referir. Transferi minhas esperanças: talvez agora alguns políticos que verdadeiramente amam a Cultura e o Povo brasileiro comecem a atuar e eu possa simplesmente apoiá-los sem me dilacerar numa atitude equivocada, com nenhum proveito para a comunidade à qual pretendia servir. Sou um homem perturbado por sonhos, quimeras e visões às vezes utópicas da vida e do real.

Depois que escrevi certas partes do romance que deixo inconcluso, comecei a me libertar de alguns dos fantasmas que me perseguem: assim, talvez possa começar a sair, também do caos trevoso e palavroso da maldita Literatura - a minha e a dos outros. Não me cobrem mais livros que não estou mais escrevendo e pelos quais já perdi qualquer interesse - pois uma das coisas de que preciso me livrar é exatamente a monstruosa vaidade literária. Não me peçam mais entrevistas, nem conferências, nem nada nessa linha. Na Universidade, vejo-me obrigado a continuar: faço lá, no mínimo, uma conferência por dia, de modo que quem quiser me ver e ouvir, é só ir aos Centros onde ensino. No mais, preciso ficar só. Não me julgo necessário nem interessante, meu isolamento não preudica ninguém. Estou até tentando conseguir um local que nem minha família saiba onde é, um lugar onde eu possa me defender, assim, contra cartas, livros, telefones, jornais, revistas e televisões.

A decisão está me custando muito, de modo que tenho direito de pedir que ela seja respeitada. Com exceção da Universidade, o que eu tinha a dizer, escrever ou fazer em público, já fiz. Basta de tanta grandeza. O resto é segredo, um segredo entre mim e Deus. Ainda uma vez lanço mão o gasto e confortável arsenal literário e despeço-me com uma citação: “O incidente está encerrado. Estou quite com a vida. É inútil passar a revista as dores, os infortúnios e os erros reíprocos. Sejam felizes”.

Ariano Suassuna, Despedida, em 9 de agosto de 1981

ARIANO SUASSUNA

Ariano Vilar Suassuna nasceu em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, na Paraíba, em 16 de junho de 1927. Após a Revolução de 1930, seu pai, João Suassuna, foi assassinado. Mudou-se com a família para Taperoá, no Sertão paraibano.

Chegou ao Recife em 1942, onde formou-se em direito. Exerceu a profissão de advogado por alguns anos, antes de começar a ensinar estética na UFPE. Após 38 anos, aposentou-se, mas a carreira continuou com as aulas-espetáculo.

Entre as mais importantes obras do dramaturgo e romancista, estão Auto da Compadecida e O romance d'a pedra do reino. Iniciou em 1970 o Movimento Armorial, interessado no desenvolvimento e no conhecimento das formas de expressão populares tradicionais.

Nos anos 1970 e 1980, publicou folhetins e artigos no Diario de Pernambuco. Em 9 de agosto de 1981, escreveu uma carta “pedindo sossego”, intitulada Despedida. Em 1990, foi empossado na Academia Brasileira de Letras. Morreu em julho de 2014, no Recife.