Breno Pessoa
Especial para o Diario
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Publicação: 15/05/2016 03:00
Alguns personagens estão há tanto tempo no imaginário que é difícil concebê-los de um jeito diferente de como os conhecemos. Já pensou como seria o Mickey Mouse repaginado para os dias atuais? Por enquanto, não ocorreu com o ratinho da Disney, mas já aconteceu com personagens dos quadrinhos, videogames - e a mais nova incursão foi nos icônicos desenhos da Hanna-Barbera. A partir de maio, Scooby-Doo, Flintstones, Corrida Maluca, Jonny Quest e outros ícones da TV dos anos 1960 ganham uma releitura em quadrinhos, em séries mensais da DC Comics, nos Estados Unidos.
A nova empreitada da Hanna-Barbera, hoje pertencente à Time Warner (também dona da DC Comics), é parecida com uma iniciativa da Mauricio de Sousa Produções (MSP), que, em 2012, inaugurou uma série de HQs com os personagens do quadrinista mais famoso do Brasil. No projeto, intitulado Graphic MSP, artistas nacionais dão um toque autoral e nova cara, na forma e conteúdo, a velhos conhecidos do público leitor, como a Turma da Mônica, Chico Bento, Astronauta, Piteco etc.
É comum, nas HQs e em outras mídias, que ocorram processos de transição na linguagem, narrativa e visual. Na evolução, surge também um amadurecimento das técnicas e temas abordados nos produtos, que, mesmo sendo prioritariamente pensados como entretenimento, buscam trazer mais realismo ou conexão com a atualidade. Personagens criados décadas atrás, dentro de outro contexto histórico e social, por mais icônicos e famosos que sejam, podem não ser atemporais e acabar soando deslocados ou datados.
Em alguns casos, a mudança acontece de forma gradativa e acaba não sendo tão notada. Batman e Superman são personagens hoje bastante diferentes de quando foram lançados. Não só os uniformes mudaram, como atitudes e comportamentos e, eventualmente, os super-heróis passam por reboots, com origens recontadas, atualizadas. O Homem-Aranha é exemplo. Hoje, tem diferentes versões nos quadrinhos: na revista original, continua o Peter Parker criado nos anos 1960. Em outro título mensal, quem encarna o aracnídeo é um adolescente negro com origens latinas, Miles Morales. Existe até versão futurista do personagem, Miguel O'Hara, o Homem-Aranha 2099.
O idealizador das graphic novels da Turma da Mônica, o jornalista Sidney Gusman, responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções, também enxerga semelhanças entre as duas iniciativas. “Editorialmente, eu adorei. Fiquei empolgadíssimo e curioso com essa ideia (da DC Comics), ainda mais porque ela tem uma similaridade com um projeto que encabeço”, diz. “Sempre achei que aqueles personagens (da Hanna-Barbera) mereciam uma releitura”, ressalta. Gusman acredita que a ideia da editora é conquistar um público novo, não apenas quem já está familiarizado com os antigos personagens. Na opinião do editor, o material original dificilmente agradaria novos leitores, por isso a necessidade de trazer algumas mudanças para tornar o produto mais moderno.
A ideia de trazer uma abordagem diferente para personagens da Hanna-Barbera não é inédita. Space Ghost já teve uma minissérie da própria DC Comics, em 2004. Lá, ficaram conhecidos o verdadeiro nome e a origem do personagem: Thaddeus Bach, um pacifista interplanetário, vira herói espacial após ter a esposa assassinada por oficiais corruptos. Um tom muito mais violento e sério do que o visto nos desenhos animados. Jonny Quest foi outro a ser repaginado: em 1996, o personagem, originalmente uma criança, virou adolescente na última série animada. Não foi bem aceito pelos fãs da série clássica nem conquistou um novo público e acabou não sendo renovado para mais uma temporada.
E como nem tudo precisa ganhar um verniz de maturidade para reavivar uma franquia, outra forma encontrada para renovar os desenhos da Hanna-Barbera foi exatamente o caminho oposto: descontruir os personagens através do humor. Laboratório Submarino 2020 e Homem-Pássaro, desenhos animados dos anos 1960 e 1970 - menos populares e originalmente mais sérios - foram resgatadas nos anos 2000 pelo Cartoon Network para o Adult Swin, a faixa de desenhos adultos da programação do canal. Space Ghost também ganhou um novo seriado, exibido de 1994 a 2008, um talk show nonsense que conta até com a participação do arqui-inimigo do herói, Zorak, como tecladista da banda do programa.
[ Reboot?
Salsicha tatuado, usando brincos alargadores e barbudo, Scooby usando uma coleira futurista e visor num dos olhos, Penélope Charmosa de colante e fuzil em mãos e Muttley com aspecto de cão raivoso e vestindo um exoesqueleto: pelo menos no visual, algumas das releituras foram bastante significativas, com o claro propósito de tornar os personagens mais adultos ou, pelo menos, causar essa impressão.
Corrida Maluca
Não é por acaso que a nova adaptação em quadrinhos tem um quê do mundo apocalíptico de Mad Max: o redesign contou com a participação do desenhista Mark Sexton, o principal artista responsável pelo storyboard de Estrada da fúria (2015), o mais recente filme da franquia, vencedor de seis Oscars.
Flintstones
A família pré-histórica parece ser uma das animações com a essência mais preservada nessa nova leva de HQs. Pelas imagens prévias que foram divulgadas, dá pra ver que o novo visual é bem fiel conceito original, embora no estilo mais adulto, próximo da maioria dos comics atuais. O lápis ficará por conta de Amanda Conner, principal artista da série da Arlequina entre 2014 e 2016, com roteiros do comediante Mark Russell.
Scooby Apocalypse
No comunicado oficial da editora, o publisher Dan DiDio afirmou que a nova série é algo como “Scooby-Doo encontra The walking dead”. Na releitura, os investigadores do sobrenatural vivem num mundo pós-apocalíptico, onde um vírus de computador transformou parte da população em monstros.
Future Quest
O grande chamariz do título, além de resgatar Jonny Quest e a família para uma nova geração de leitores, é reunir outros heróis dos desenhos de aventura do antigo estúdio de animação, incluindo, Space Ghost, Herculoides, Homem Pássaro, Frankstein Jr., Os Impossíveis, Mightor e Galaxy Trio.
[ Mario no cinema
Vindo direto dos videogames, Super Mario Bros ganhou um tom mais dark para a adaptação cinematográfica com atores, de 1993. Aparentemente, a proposta foi tentar transformar mais realista e complexa a trama básica do jogo: um encanador italiano tentando resgatar uma princesa que é, game após game, sequestrada por um vilão. Em lugar dos cenários coloridos do Reino dos Cogumelos, uma das marcas registradas da franquia, a história se passa em Nova York e numa estranha dimensão paralela dominada por dinossauros com inteligência mais desenvolvida, que querem invadir a Terra com a intenção de evoluir a espécie para uma nova raça de répteis humanoides. A trama rocambolesca tem Bob Hoskins como Mario e John Leguizamo como Luigi.
Quando o traço fica suavizado
Enquanto os clássicos da Hanna-Barbera passam por uma transformação com a intenção de, na teoria, atrair um público mais maduro nos quadrinhos, existem casos de personagens que seguiram o caminho oposto. Lançadas originalmente nos quadrinhos em 1984, as Tartarugas Ninja foram suavizadas para ganhar as telas num desenho animado, exibido entre 1987 e 1996. Nas HQs, as tartarugas eram violentas e sombrias, ao ponto de matar o Destruidor (o vilão mais famoso da série de TV) na primeira edição. A mudança deu tão certo que ainda hoje influencia produtos da franquia: a nova série de filmes, iniciada em 2014 e com uma sequência com estreia marcada para agosto, transpõe elementos do seriado, como a personalidade dos quelônios, os veículos usados pelos heróis e personagens coadjuvantes.
Rambo foi mais um personagem que perdeu seus contornos violentos (e sua essência) ao ser levado para a televisão. Embora seja mais conhecido pelos quatro filmes estrelados por Sylvester Stallone, o personagem surgiu em 1972, no livro de estreia de David Morell: First Blood (aliás, esse é o título original do longa rebatizado, no Brasil, de Rambo: progamado para matar). O desenho animado não tinha mortes e mantinha o clima aventuresco. Conan, outro personagem da literatura eternizado no cinema por um astro dos anos 1980, neste caso, Arnold Schwarzenegger, também ganhou uma versão infantil para a TV na mesma época.
A turma que se desenvolveu
Certamente os mais famosos e bem-sucedidos personagens multimídia do Brasil, a Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa, não passou incólume ao longo das mais de cinco décadas de existência. Além de terem enfrentado uma evolução gradativa de design, Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e outros foram reimaginados para o público adolescente, em 2008, numa nova linha de HQs, Turma da Mônica jovem, no formato mangá (HQ japonês).
Trazer a famosa turma alguns anos mais velha e encarar dilemas da adolescência e situações fantásticas, bem ao estilo dos quadrinhos japoneses. A aposta deu tão certo que a revista vende centenas de milhares de edições mensalmente: o número de estreia, por exemplo, superou as 405 mil edições comercializadas. Na esteira do sucesso da Turma da Mônica jovem, a Luluzinha teve também uma versão adolescente: Luluzinha teen, que, apesar de relativo sucesso editorial, não manteve boas vendas e foi cancelada na 65ª edição, após ser publicada entre 2009 e 2015.
Ao contrário da Turma da Mônica jovem, que ganhou recentemente a companhia de mais uma série mensal, Chico Bento Moço, as Graphic MSP têm periodicidade trimestral, e cada edição traz uma história completa, focada num determinado personagem. A primeira a inaugurar a linha foi Astronauta, por Danilo Beyruth, quadrinista independente ganhador do Troféu HQ Mix 2010 em três categorias (Melhor Desenhista Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Melhor Edição Especial Nacional) por sua HQ Bando de Dois.
“As graphics foram concebidas para pegar um público mais velho”, explica Sidney Gusman. Mas o editor explica que, como se tratam de personagens populares sobretudo entre o público infantil, “em algum momento uma criança pode pegar a HQ” e, por isso, elas não trazem nenhum tipo de conteúdo explícito. “Até porque temos a preocupação de manter a essência dos personagens e os elementos primordiais das histórias originais”, diz.
Segundo Gusman, a iniciativa trouxe de volta o público que estava afastado não só da Turma da Mônica, mas das HQs. “Aconteceu de muita gente comentar que, depois das graphics, voltou a ler quadrinhos”, diz. Já foram publicadas 11 edições - a mais recente é Papa-Capim, lançada em abril. De acordo com Gusman, a série tem edições programadas até 2019.