E toda nudez será censurada? Lançamento e banimento no YouTube de videoclipe da cantora pernambucana Clarice Falcão aguçam o debate sobre tabus em relação ao nu artístico - reforçados, sobretudo, por proibições das redes sociais

Larissa Lins
larissa.lins@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 22/12/2016 03:00

 (VIMEO/REPRODUÇÃO DA INTERNET)

Um monte de gente se divertindo com os próprios órgãos genitais. É como a pernambucana Clarice Falcão define o clipe da música Eu escolhi você, lançado na terça-feira no canal dela no YouTube. A cantora se diz surpresa com a comoção que gerou. Depois de rebater críticas, tenta afastar de si mesma termos como “genialidade”, “manifesto”, “loucura”, atrelados à infinidade de comentários enviados a seus perfis virtuais. Clarice diz que o produto não é nada demais. “O clipe, em si, não tem nada de revolucionário, nada de genial, nem acho que é panfletário, não é um manifesto”, avaliou a artista ao Viver. A rejeição  às cenas e a censura do vídeo - removido pelo YouTube - é que lhe parecem relevantes. Reacendem os debates em torno da reprovação à nudez, freada nas redes sociais, um dos principais espaços de manifestação artística na atualidade.

Fechadas nos quadris de homens e mulheres, as imagens de Eu escolhi você, do disco Problema meu, polemizaram de imediato: enfeitados com luzes, plumas, adereços carnavalescos, genitais masculinos e femininos protagonizam o clipe, cujo desfecho põe em foco um vibrador, visto por mais de 200 mil pessoas no YouTube nas duas primeiras horas de exibição (e 650 mil na plataforma Vimeo até o fechamento desta edição). Dirigido por Pablo Monaqueze, com edição de Célio Porto e Phillipe Cardelli, o vídeo foi lançado com restrições a menores de 18 anos.

Censura semelhante atingiu a cantora Karina Buhr com o disco Selvática, em 2015. A capa com imagem dos mamilos dela foi vetada pelo Facebook. A proibição motivou campanha com a hashtag #selvatica, e mulheres posaram com os seios descobertos para apoiá-la.

Clarice Falcão: "A ideia era dessexualizar o corpo" (LUCAS BORI/DIVULGAÇÃO)
Clarice Falcão: "A ideia era dessexualizar o corpo"
A problematização da nudez - e do veto - vai além de casos isolados: interfere no alcance de produções audiovisuais, fotográficas, plásticas, cênicas. Para a pesquisadora de gênero, feminismo e imagens da UFPE Fernanda Capibaribe, a formação religiosa da sociedade ocidental contribui para a associação entre nudez e erotismo. “Há uma contradição nos julgamentos. A mulher pode aparecer seminua numa propaganda de cerveja, se serve para incentivar o olhar falocêntrico do público masculino heterossexual, mas a mulher Clarice não tem o direito de, por conta própria e como enfrentamento, mostrar corpos nus”, pontua . Para ela, a internet ajuda a ampliar o acesso à nudez, desconstrói tabus, mas é minada pela censura - “da regulação estatal, como é o caso da China, à regulação nas redes sociais, nas quais as pessoas publicam posicionamentos, muitos deles conservadores”, diz.

Embora as principais redes (Instagram, Facebook, YouTube) mencionem a restrição nos termos de uso, há brechas, incoerências. “Um vídeo que apresente nudez ou outro conteúdo de natureza sexual poderá ser permitido se o objetivo principal for didático, informativo, científico ou artístico, e não for injustificadamente gráfico”, diz o código do YouTube. Clarice rebate: “Então, se o vídeo é artístico, categoria na qual eu acho que se encaixa, sendo um videoclipe de música, não seria censurado. Na verdade, nunca esperei que fosse essa gritaria toda. A ideia era ‘dessexualizar’ o corpo. O clipe foi feito em casa, sem a menor pretensão, com amigos. Se o clipe tiver alguma importância, e eu acho que não tem, foi de sublinhar esse ódio, que eu acho incompreensível. É o ódio aos genitais.”

Ela não é a única a criticar a conduta. No nicho virtual, campanhas como a hashtag #FreeTheNipple (“liberdade aos mamilos”, em tradução livre) pregam a liberação da nudez e reprovam o fato de a restrição ser direcionada, sobretudo, às mulheres. Projetos como o #OriginalSinProject, criado pelo artista brasileiro radicado na Alemanha André Levy, reforçam a corrente libertária: ele desenha roupas íntimas em pedras, com o intuito de repudiar o excesso de decoro.

Entrevista - Fernanda Capibaribe //  pesquisadora e professora

A nudez ainda é muito castigada? Por que é tabu?

A nudez ainda é muito censurada de uma forma geral, porque vem intimamente atrelada à ideia de erotismo/pornografia e, por vários motivos, sendo o principal deles o nosso legado cristão/religioso, as referências ao sexo são entendidas enquanto tabu. Obscenas, portanto. O sentido da palavra “obsceno” vem de “ob” (oposição) e “caenus” (sociedade). Então, engloba tudo o que ofende ou enfrenta uma ideia de bem-estar compartilhado. Na língua inglesa, esse sentido também se conecta à ideia de “off-scene”, ou seja, tudo o que deve ficar “fora de cena”. O sexo é talvez a temática que mais se encaixe nessa ideia, sendo entendido como um atentado ao pudor. E a nudez vem no pacote.

Alega-se que, enquanto cenas artísticas de nudez são censuradas, cenas de violência, estupro e sexualização da mulher são veiculadas. Concorda que há incoerência nas normas?
Há uma contradição nos julgamentos, porque há uma hipocrisia no trato social e um problema gravíssimo de naturalização de certas ideias em nossa sociedade. O Brasil, por exemplo, é um país onde a cultura do estupro está entranhada no trato social. Um país extremamente machista, atravessado pela naturalização das relações desiguais de sexo-gênero. Os corpos de mulheres são “propriedade” do olhar falocêntrico. Esse, ao mesmo tempo em que é permissivo quanto ao abuso e à violência em diversos níveis praticada contra as mulheres e outros grupos LGBTTI, como se fosse “normal”, também regula esses corpos, julgando quando sua aparição é bem-vinda ou não.