Morre narrador onisciente. Vozes organizam o texto: Eis o narrador oculto

Raimundo Carrero
escritor
opiniao.pe@dabr.com.br

Publicação: 29/02/2016 03:00

Agora o golpe fatal: Morre neste momento o narrador onisciente, tanto tradicional quanto contemporâneo - principalmente o narrador onisciente todo poderoso - aquele que conhece tudo, penetra na vontade e nos pensamentos dos personagens - para dar lugar aos protagonistas, cujas vozes bordam, por assim dizer, o texto. A imagem do bordado me parece conveniente porque os pontos lembram as palavras que se ajustam na página. E se errar uma ponto estraga o bordado inteiro. Uma palavra fora do lugar compromete o romance. Sem esquecer que matamos, em princípio, o autor. E como fica? Sem o autor, sem o narrador onisciente, como é que fica?
 Se é preciso que alguém viva, convocamos o narrador oculto, aquele que organiza as vozes, os ouvidos e olhar dos personagens na construção do texto. Enfim, da narrativa.E cuja tarefa não é de esmiuçar os personagens mas deixa o leitor confortavelmente diante da história. Vamos começar então com um exemplo objetivo, através da primeira frase que dá início ao romance Pedro Páramo, de Juan Rulfo: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo, minha mãe que me disse.” Para desgosto do críticos conservadores e tradicionalistas, não é o caso de repetição do verbo dizer, na mesma frase. Isto não é uma frase convencional, mas a reunião de vozes sob a coordenação do narrador oculto, que funciona aí como um maestro diante da orquestra. Sofisticação pura para aquilo que parece simples.
 Esta é uma típica fala de personagem ou de narrador oculto em primeira pessoa - aqui ele se chama Juan Preciado, com voz e com ouvido. A voz diz: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai”. E o ouvido lembra na escuta: “Um tal de Pedro Páramo”: Ouvido de Juan Preciado, porque a voz é da mãe cheia de rancor, que ele escuta e que esclarece na frase seguinte: “Minha mãe que me disse”.
 Parece complicado? Não, não é. Não leia apenas com os olhos. Não se deve ler apenas com os olhos, mas também com os ouvidos. Apure bem os ouvidos. Dentro de uma frase circulam muitas vozes e muitos sons.Tudo sob o comando do narrador oculto. Vejam esta frase em Madame Bovary, de Flaubert : “Rodolfo, que fora o condutor daquela fatalidade, achou-o bonachão demais para um homem na sua situação, cômico e até um tanto vil”. Há ai, claramente, duas vozes. A primeira voz é do narrador oculto: “ Rodolfo, que fora o condutor daquela fatalidade, achou-o...”. A segunda voz é a voz do Rodolfo, dizendo :” bonachão demais para um homem na sua situação, cômico e até um tanto vil”. Percebe-se, com clareza, o comando do narrador oculto, o maestro.
 No livro O Recife e a segunda guerra mundial - edições Bagaço -, de Rostand Paraíso, lemos texto exemplar de narrador onisciente tradicional, até porque é ensaio e um ensaio tem compromisso imediato com o conteúdo. Estrutura-se com elegância e fácil comunicação: “No Recife, mês de junho, era tempo das festas de São João e São Pedro. Aqui as fogueiras não eram consequência dos bombardeios, e sim ateadas por nós mesmos, para iluminar nossas noites. Os fogos eram de artifício e os nossos céus estavam cheios, não de aviões, mas de balões coloridos...”