A Cinza e não As Cinzas das Horas chega aos 100 anos com antecipações

Raimundo Carrero
Escritor
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Publicação: 24/04/2017 09:00

Assim mesmo, A Cinza das Horas e não As Cinzas das Horas , feito se diz por aí. Eu mesmo confundi e disse muitas muitas, diversas vezes As Cinzas das Horas. Disse e escrevi, o que é ainda mais grave. O nome do livro centenário de Manuel Bandeira começa assim, no plural e nós dizemos no plural, por costume. Ainda assim, no singular ou no plural, a metáfora é bela, extraordinária, exemplar: O tempo transforma as horas em cinza, tudo é cinza e, portanto não precisa no plural. Daí o tom triste, melancólico, desalentado dos  poemas. Mas se o leitor percebe, de imediato, a metáfora, nunca mais diz as cinzas. De novo: a vida é uma só’, apesar das multiplicidades e, portanto , no singular. Estranho, estranhíssimo, mas simples, direto e incisivo. Pode parecer uma coisa boba, brincadeira sem  graça, mas, afinal, literatura é feita com palavras. Menino, fui feliz como os demais... e pede atenção redobrada. Leitura apressada, por exemplo, leva a equívocos enormes. Então, num título, pode mudar todo o sentido da obra.

O livro começa com um poema clássico que se transformou na verdadeira poética de Manuel Bandeira, a obra que dessacralizou a poesia brasileira. Este poema é desencanto. Assim: “Eu faço versos como quem chora de desalento....de desencanto...Fecha o meu livro se por agora não tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente. Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração.  E nestes versos de angústia rouca. Assim dos lábios a vida corre. Deixando um acre sabor na boca. – Eu faço versos como quem morre.”

Daí, então, o título.  Basta fazer uma leitura aproximada entre o título e o poema que, no entanto, é antecedido pelo poema “Epígrafe. Os livros chamados literários, poemas, novelas e romances teem, epígrafes, quase sempre. Em geral, frases, poemas ou versos de outros autores, que lançam luzes sobre a obra que se vai ler , ou que guiou o autor ao pretender escrever. Manuel Bandeira reinventou a epígrafe”, escrevendo ele próprio um poema inteiro.               

Eis Epígrafe: “Sou bem nascido.  Menino, Fui, como os demais feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis. Veio o mau gênio da vida, rompeu em meu coração, levou tudo de vencida, rugiu como um furacão, Turbou, partiu, abateu, Queimou sem razão nem dó – ah, que dor¹ magoado e só, - Só -  meu coração ardeu: Ardeu em gritos dementes na sua paixão sombria....E dessas horas ardentes ficou esta cinza fria....- Esta pouca poesia fria...                           

Temos aí, um nova imagem, e uma imagem verdadeira ou, ainda mais, uma metáfora verdadeira. Mais do tempo que tudo transforma em cinza, a cinza é o próprio Bandeira. Um pouco mais: O poeta nasceu de boa família, foi feliz, depois triste, afinal a vida é um furacão – percebem – que turbou, partiu, abateu, queimou e o transformou em cinza, enfim, esta pouca cinza fria...

Magnífico, só espero que este livro, que chega aos 100 anos, seja lido e examinado nas escolas, nos colégios, nas faculdades, para que se preste ao autor a verdadeira homenagem que ele merece. Não vamos transformar em cinza em livro notável que atesta agora a eternidade da li teratura . E a poesia, é claro.