A responsabilização das plataformas digitais e a liberdade de expressão

Maurício Rands
Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

Publicação: 30/06/2025 01:00

A regulamentação dos provedores de internet ainda não avançou na legislação. Nem por isso o sistema constitucional brasileiro deixa de contar com instrumentos para conciliar a liberdade de expressão com a responsabilização dos provedores de internet. O STF acaba de definir a interpretação constitucional do Marco Civil da internet, a lei 12.965/2014. Depois de muito debate interno, os ministros da corte chegaram a uma deliberação nos julgamentos dos recursos extraordinários 1037396, relatado por Dias Toffoli, e 1057258, por Luiz Fux. Ambos foram elevados a Temas da Repercussão Geral sob os números 533 e 987. Na conclusão do julgamento, em 26/06/2025, o STF deliberou pela parcial inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Por maioria de votos (8x3), prevaleceu o entendimento de que essa norma já não é suficiente para proteger direitos fundamentais e a democracia. E que, por conseguinte, deve-se interpretá-la de modo a exigir maior dever de cuidado por parte das plataformas digitais, podendo-se responsabilizá-las em alguns casos mesmo sem prévia medida judicial. Nos casos de alegações de crimes contra a honra, ficou mantida a aplicação literal do art. 19 segundo a qual a responsabilização das plataformas só pode ser feita se elas descumprirem uma ordem judicial para a remoção do conteúdo. 

Em outros casos, o tribunal considerou que os provedores podem ser responsabilizados civilmente se não atuarem para retirar conteúdos que configurem a prática de crimes graves que decorram, entre outros, de conteúdos referentes a tentativa de golpe de Estado, abolição do estado democrático de direito, terrorismo, instigação à mutilação ou ao suicídio, racismo, homofobia ou crimes contra mulheres e crianças. Para essa responsabilização mesmo antes de decisão judicial, a corte acrescentou o requisito da falha sistêmica, considerada como a situação em que o provedor falta ao dever de adotar medidas adequadas de prevenção ou remoção dos conteúdos ilícitos, em violação do dever de atuar de forma responsável, transparente e cautelosa. 

Nos casos dos crimes em geral, de menor gravidade, a corte determinou que os provedores ficarão sujeitos à responsabilização civil pelos danos decorrentes de conteúdos gerados se, após receber um pedido de retirada, deixar de remover o conteúdo. A regra também vale para os casos de contas denunciadas como falsas. A decisão também definiu deveres de autorregulação segundo os quais os provedores ficam obrigados a criar um sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos. E deverão disponibilizar canais permanentes e específicos de atendimento, acessíveis e amplamente divulgados.

A decisão despertou muita polêmica. Não faltam os que acusam o STF de mais uma vez estar invadindo a competência do poder legislativo. Esquecem que o regime da separação de poderes no estado moderno é mais complexo. Os três poderes de alguma forma praticam atos que na concepção mais rígida do passado poderiam ser tidos como de atribuição de outro poder. Não se dão conta de que a decisão do STF nos referidos Temas 533 e 987 foi adotada em julgamentos de recursos extraordinários. E que, portanto, o STF agiu por provocação de partes legítimas. No primeiro RE a Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. recorreu de decisão do TJ-SP que mandara excluir um perfil falso da rede social e o pagamento de indenização por danos morais. A decisão foi mantida pelo STF. No outro RE, a corte reverteu a decisão que condenara a Google Brasil Internet S.A. por não excluir da extinta rede social Orkut uma comunidade criada para ofender uma pessoa. Por outro lado, os críticos da decisão do STF não respondem ao argumento de que inexistem direitos fundamentais absolutos. A liberdade de expressão é um direito fundamental previsto no art. 5º, incisos IV e IX, e 220 da CF/88. Mas também são direitos fundamentais em igualdade hierárquica os conferidos pelo art. 5º, incisos X (intimidade, vida privada, honra e imagem), XIV (acesso à informação), XXII (propriedade), XXVII (direito autoral), XXXII (direitos dos consumidores), XLII (racismo) e tantos outros. Deve o estado ficar inerte quando esses e outros direitos fundamentais estiverem sendo violados por conteúdos na internet postados sob a suposta proteção do direito à liberdade de expressão? É evidente que esses conflitos no exercício de direitos podem e devem ser resolvidos pelos princípios e regras da Constituição. Inclusive pelos princípios instrumentais de interpretação constitucional, como são os princípios da interpretação conforme à constituição, da proporcionalidade e da unidade da constituição. Foi isso que fez o STF nesse julgamento dos Temas 533 e 987. Devidamente provocado pelas partes. Ao harmonizar os direitos fundamentais potencialmente em conflito, o STF conferiu uma correta, equilibrada e ponderada interpretação do Marco Civil da Internet. Pelo menos até que o Congresso Nacional decida retomar a deliberação do PL 2630/2020 ou outra proposição que o suceda.