Belchior: encontro de vozes

Neuma Costa
Professora aposentada do IFPE

Publicação: 23/05/2017 03:00

A tentativa de evocar a obra de um compositor implica, necessariamente, remeter-se à relação homem x linguagem ? significa refletir sobre essa simbiose compreendida como ação que, antes de mais nada, proporciona a passagem do caos à ordem.  Não há dúvida de que o ato de falar está fundamentado na própria origem e historicidade de uma instância conhecida como sapiens. Afinal, a linguagem foi a inscrição humana no mundo, e nenhuma característica é tão inerente à espécie quanto essa que nos faculta a interação com o Outro.        
Foi esse salto qualitativo que proporcionou, entre outras coisas, o encontro e desencontro de vozes que falam e de outras que se calam. A voz desse poeta não emudeceu, ao contrário, ressoou pelos campos, montanhas e planícies: “Não sou feliz, mas não sou mudo / hoje eu canto muito mais”. Vale dizer que é uma palavra povoada e superpovoada de intenções de outrem, porque a poética de Belchior foi construída sempre na atmosfera do “já dito”, um fenômeno que a Linguística denomina dialogismo, ou seja, diálogo entre textos.         
Na retomada da voz do outro, há sempre uma nova apreciação, como ocorre quando ele tenta desconstruir o discurso cartesiano (hegemonia da RAZÃO): “Não queira o que a cabeça pensa; queira o que a alma deseja”. E não foi só a dualidade razão x emoção que ocupou as páginas do referido compositor. Também se contrapôs à tese burguesa da acumulação de bens quando vaticinava em Paralelas: “Quanto mais se multiplica trabalho e dinheiro mais se diminui o amor”. Repete a desconstrução do discurso capitalista nos versos que seguem: “E hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude / está em casa (...) contando os seus metais”         
Esse diálogo constante com outros textos denuncia a linguagem como encontro e luta, um corpo a corpo que vai gerando intrincadas redes de significações. Para reforçar essa teoria, recorremos à antológica frase de Bakhtin (Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1994): “A palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais”. A vocação para o social marca, definitivamente, a produção de Belchior, porque sempre procura uma forma de transformar o texto em lugar por excelência de qualquer investigação sobre o homem e sua trajetória histórica.        
Do ponto de vista existencial, não é raro flagrar-se um tom melancólico, saudosista, como se fora um gosto amargo de perdas: “Eu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais / como um galo, quando havia galos, noites e quintais”. Temos aí mais uma dualidade da condição humana, quer dizer, o embate entre optar pela simplicidade do campo ou enfrentar a ostentação urbana. E assim ele fala do olhar lacrimoso, que não tinha e hoje tem, quando se remete ao êxodo do interior para outras paragens ? uma travessia que o forçou a se distanciar do sonho e do sangue da América do Sul. A opção por esse horizonte cultural está evidente em: “um tango argentino me vai bem melhor que um blues”.        Nos fragmentos acima destacados, pudemos flagrar a inscrição no discurso do outro, com a finalidade de desconstruir valores secularmente consagrados. Este é um exercício de releitura recorrente na poética em questão, bem marcada por um sentimento de aflição por não ter conseguido mudar a realidade: “Apesar de tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Finalmente, ao revisitar a mensagem do belchiorismo, pudemos antever, com bastante clareza, as divergentes relações discursivas à mercê das quais se move o sujeito, na “condição contaminada” de ser falante.