Pernambuco e o Japão: o iatê dos fulniôs de Águas Belas e a língua japonesa

Rafael Cavalcanti Lemos
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Publicação: 04/02/2021 03:00

Em 1543 deu-se o primeiro contato duradouro dos japoneses com ocidentais: o Império Português, que algumas décadas antes aportara em praias brasileiras, chegava (por seus súditos Antônio da Mota, Francisco Zeimoto e Antônio Peixoto) também ao Japão (como em 1572 nos conta - ou canta - Camões na estrofe 131 do canto X d’Os Lusíadas), tendo os portugueses ali permanecido até sua expulsão em 1639. Foram chamados “namban” (“bárbaros do sul”) e - escreveu em 1606 Bunshi Nambo - tinham “o hábito de vagar de lugar em lugar, permutando as coisas que têm pelas que não têm” (algumas das que tinham foram as primeiras armas de fogo no Japão).

Diversas palavras da língua portuguesa incorporaram-se entrementes à japonesa: dentre outras, “frasco” tornou-se “furasuko”; “gibão”, “juban”; “capitão”, “kapitan”; “cristão”, “kirishitan”; “Cristo”, “Kirisuto”; “confeito”, “konpeitô”; “pão”, “pan”; “sabão”, “shabon”; “tabaco”, “tabako”.

A gramática e o dicionário de japonês em língua ocidental mais antigos foram redigidos em português pelos jesuítas (aquela por João Rodrigues, intitulada Arte da língua do Japão) nos primeiros anos do século XVII.

O iatê, falado pelos fulniôs na agrestina Águas Belas, é a única língua nativa do Nordeste brasileiro sobrevivente fora do Maranhão. Os primeiros registros conhecidos sobre os fulniôs (referidos como “carnijós”) deram-se no início do século XVIII.

Parecenças entre a língua iatê e a japonesa foram descobertas pelo então mestrando Araken Guedes Barbosa ao lhes comparar o vocabulário. Como se lê do Jornal do Brasil em 22 de abril de 1989, “[a] pesquisa de Araken Barbosa começou a partir do estudo ‘Estrutura da língua iatê’, do professor pernambucano Geraldo Lapenda. [...] [O]s fonemas e os sentidos são quase idênticos em iatê e em japonês”.

Segundo Geraldo Lapenda, “[o]s fulniôs teriam chegado aqui em tempo relativamente recente, porque deles não há traços toponímicos nem vestígios de nomes de animais, de árvores, de comidas, de utensílios, etc. no português regional (o que não sucede com o cariri e principalmente com o tupi), e sua língua quase nenhuma influência recebeu das nações indígenas que já habitavam a região, e, por outro lado, em nada influiu nelas”.

Embora japoneses (possivelmente milhares) tenham sido escravizados pelos portugueses e já em 1573 se hajam mesmo casado entre si (ano em que Jacinta de Sá e Guilherme Brandão, japoneses apesar dos nomes, uniram-se em matrimônio em Lisboa), não se sabe que algum deles (japoneses escravizados) haja sido trazido ao Brasil. As semelhanças entre o iatê (e outras línguas ameríndias) e o japonês decorreriam portanto de migração antiga da Ásia à América do Sul, não necessariamente do Japão, que teria sido também destino migratório a partir da Sibéria.

Fontes: História da vida do padre Francisco de Xavier, de João de Lucena. No Japão: impressões da terra e da gente, de Oliveira Lima. Estrutura da língua iatê, de Geraldo Lapenda. Notas e observações sobre um confronto linguístico japonês-ameríndio,  de Luiz Caldas Tibiriçá. Choque luso no Japão dos séculos XVI e XVII, de José Yamashiro. Tanegashima: the arrival of Europe in Japan, de Olof G. Lidin. Characteristics of Mongoloid and neighboring populations based on the genetic markers of human immunoglobulins, de H. Matsumoto. Dicionário de japonês-português, de Jaime Nuno Cepeda Coelho. Japoneses e indígenas [fulniôs] têm línguas parecidas (Jornal do Brasil, 22 de abril de 1989). Ya:Thê, a última língua nativa no Nordeste do Brasil (tese), de Januacele Francisca da Costa. Da mesma autora, Descrevendo línguas brasileiras: yaathe, a língua dos índios fulni-ô, publicado na Revista do GELNE em 2015. Dicionário iatê-português, português-iatê, de Aluízio Caetano de Sá. Estudo liderado por brasileiros usa DNA para traçar origens dos primeiros povos das Américas (BBC News Brasil, 21 de dezembro de 2018). Yaathe, a língua do misterioso mundo Fulni-ô” (Notícias da Funai, 26 de abril de 2019). A história dos japoneses escravizados por portugueses e vendidos pelo mundo mais de 400 anos atrás (BBC News Brasil, 12 de setembro de 2020).