A febre da desconfiança: um diagnóstico da crise vacinal no Brasil

Eduardo Jorge da Fonseca Lima
Médico; pesquisador do Imip e conselheiro federal por Pernambuco (CFM)

Publicação: 07/08/2025 03:00

Como médico, vejo com imensa preocupação um dos maiores paradoxos da nossa história recente: após décadas de sucesso em controlar e até erradicar doenças terríveis, hoje convivemos com o risco real do seu retorno. O Brasil, que já foi referência mundial em imunização, temos preocupação com o retorno do sarampo e vive sob a sombra da reintrodução da poliomielite. O que aconteceu?

A queda na vacinação infantil não tem uma causa única; é uma tempestade perfeita que vem se formando desde 2015. O estopim, sem dúvida, foi a epidemia de desinformação. As fake news, espalhadas de forma viral pelas redes sociais, funcionaram como um ataque cirúrgico ao coração do nosso sistema de saúde: a confiança. Mentiras sobre vacinas causarem autismo ou conterem ingredientes perigosos, por mais absurdas que sejam, exploram o medo mais profundo de qualquer pai ou mãe. Quando a política se apropria desse discurso e o legitima, o estrago se torna devastador.

Esse ambiente tóxico alimentou a hesitação vacinal. O sucesso do passado virou nosso inimigo. Gerações inteiras cresceram sem ver o rosto cruel das doenças como pólio, difteria, meningites, e essa ausência de memória coletiva gerou uma falsa sensação de segurança. A vacina, que era vista como um ato essencial pela sobrevivência, passou a ser encarada como um procedimento de rotina incômodo e adiável. O medo da agulha ou de uma febre baixa se tornou, para muitos, maior do que o medo da própria doença. É a inversão completa da lógica.

E as consequências já são fatos, não mais teoria. A coqueluche voltou com força, atingindo picos que não víamos há quase uma década. Ameaças que deveriam estar apenas nos livros de história estão batendo à nossa porta.

Além da crise de confiança, problemas estruturais agravam o quadro. Pais que desejam vacinar seus filhos enfrentam postos de saúde com horários incompatíveis com a jornada de trabalho e, por vezes, a frustrante falta de doses. Cada viagem perdida a um posto de saúde é uma oportunidade de proteção que se vai e uma pequena rachadura na credibilidade do sistema.

Entender a profundidade desta crise é o primeiro passo. Não se trata apenas de números em um gráfico, mas da saúde de uma geração inteira que está em jogo. Recuperar o terreno perdido exige mais do que campanhas; exige um esforço nacional para restaurar o bem mais valioso da saúde pública: a confiança.