O Natal de Rocky Balboa Idoso, que carrega há quatro décadas o apelido do personagem do cinema, vai passar as festas natalinas pela primeira vez numa invasão sem-teto

Aline Moura
alinemoura1@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 24/12/2018 09:00

De fala lenta e pausada, voz baixa, Antônio Severino da Silva, 72 anos, está sentado numa poltrona amarela gasta com o tempo, instalada na entrada do acampamento urbano Icauã Rodrigues, ao receber a reportagem. Ele adquire um ar solene, quando obtém a informação de que falaria pelas 45 famílias sem-teto que moram há sete meses lá, após a ponte da Avenida Caxangá, Zona Oeste do Recife. Fica orgulhoso com a entrevista. Antônio Severino é conhecido como Rocky, um apelido que recebeu desde os 30 anos, aproximadamente, após se tornar fã de Rocky, filme lançado em 1976, ano em que o Brasil era governado pelo general Ernesto Geisel. Com a imagem de lutador entre os seus, depois de começar a trabalhar aos 9 anos para ajudar a família, ele vai passar, pela primeira vez, o Natal numa invasão.

Rocky, como prefere ser chamado, faz parte de quase 54,8 milhões de brasileiros em situação de pobreza, um número que aumentou em dois milhões neste ano, segundo o IBGE. Ele forma um contingente de pessoas que precisa receber ajuda de terceiros para comemorar as festas natalinas e voltar a sonhar.

Filho de trabalhadores rurais, nascido em Vicência, interior de Pernambuco, Rocky sempre passou a vida aos solavancos, sem carteira assinada, sem saber o dia de amanhã. Ele não tem humor para muitas risadas e reclama com frequência dos políticos e da “sociedade”, que não enxergam os mais carentes. Nessa onda liberal e conservadora que toma o país, teme que pessoas sem oportunidade de estudo e capacitação fiquem mais à margem do que já são.

A idade avançada é um agravante para o sem-teto, que se abriga, atualmente, num espaço de aproximadamente três metros quadrados, onde existe uma cama de solteiro, uma pequenina estante, um aparelho de som e uma caixa de papelão. O morador do “lote 49” não tem geladeira, televisão ou fogão e possui uma renda de aproximadamente R$ 406 por mês. Quando quer cozinhar ou se alimentar, dirige-se à entrada do acampamento, onde os amigos cozinham à lenha, num espaço comunitário. Todos aceitam doações, roupas, alimentos.

Exemplo
Rocky se considera como um exemplo dos que mais podem sofrer a partir do próximo ano, depois de ouvir que o governo de Jair Bolsonaro (PSL) pretende tipificar invasões como atos terroristas. Ele é negro, idoso, e mora atualmente num terreno da União, de responsabilidade do governo federal, onde os companheiros adentraram numa pequena mata perto da UPA da Caxangá, que servia de ponto de prostituição, venda de drogas e refúgio para assaltantes. Modificada com o trabalho de várias mãos, a localidade agora é outra, com barracos de madeira e lonas sob árvores imensas, terra batida, crianças brincando de bicicleta, gatos e cachorrinhos convivendo ao mesmo lado.

O Recife tem um déficit de 108 mil unidades habitacionais, segundo movimentos que representam os sem-teto, e o homem que recebeu o apelido do filme vencedor de Oscar na década de 1970 é uma das pessoas que buscam por um lar anos a fio. Ele tem um histórico de invasões, mas nunca passou o Natal numa ocupação, como agora. Sempre era expulso pela polícia antes e tinha que pagar um quartinho por R$ 200 nessa época do ano, ficando com quase nada para comer.

Com dificuldade de fazer bicos, de trabalhar no mercado informal, como se acostumou ao longo de sua trajetória, Rocky conta que este foi um dos anos mais difíceis de sua vida. Ele lembra que já trabalhou na roça, transportou carroça com os braços, fez marcenaria, ajudou os pais nos engenhos que morava, mas nos locais onde passou tinha muitas frutas, galinha solta e abrigo. “Agora estou doente, idoso, não posso trabalhar”, observa, constatando uma realidade. Quem não tem capacitação e perdeu a força física tem mais dificuldade de sobreviver.

CHEGADA
Rocky veio para o Recife em 1968, no auge do AI-5, decretado na ditadura militar. Ele chegou assustado do campo, ainda adolescente, depois de ter visto trabalhadores serem arrastados de casa doente para “levar pau” e trabalhar. Além de Vicência, ele morou em Buenos Aires e Nazaré da Mata, também no interior pernambucano. Ao chegar à capital, naquela época, preferiu não se envolver em política, optou por ficar neutro para sofrer menos.

Atualmente, Rocky sente-se um pouco amargo e pessimista com os rumos da política brasileira, teme que Bolsonaro retome um regime autoritário, “pise ainda mais nos pobres”, e aguarda as festas natalinas com um certo ceticismo, mesmo acreditando em Deus e no aniversariante, Jesus. Um grupo universitário se comprometeu de fazer um almoço de Natal para cerca de 150 pessoas que estão na ocupação, mas ele teme que não apareçam, mostra-se desconfiado. “Não sei, né, se eles vêm, não sei (...) O que espero desse Natal é a força de Deus, dos governantes aqui da terra não espero nada. Deus representa tudo na minha vida, Deus é meu dono, meu pai, meu irmão, meu amigo, Deus é tudo para mim. Acima de tudo aqui na terra”, declarou, frisando, novamente, sentir-se invisível para “a sociedade”.

O idoso reage ao falar sobre as críticas de Bolsonaro, que já acusou integrantes de Movimentos Sem Teto e Sem Terra de “vagabundos”. Ele admite que, em algumas ocupações, um ou dois mancham a imagem dos movimentos porque invadem e já pensam em vender o imóvel se conseguirem legalizar. Mas esses, garante o sem-teto, são em menor número. “A gente não vive num lugar desses porque quer, aqui tem maruim, muriçoca, a gente dorme maldormido nessas cabanas, quando chove molha mais dentro do que fora”.

À espera de um Natal sem fome e dias melhores, que possam renová-lo, em meio a tantas expectativas com o futuro governo, ele se descontrai em um raro momento. “Por que me chamo, Rocky?”, indaga. “Por causa de Rocky Balboa, daqueles filmes, do cinema. Se me chamarem pelo meu nome (Antônio) e eu estiver de costas, nem vou saber que sou eu”, responde, desta vez sorrindo. Rocky tem uma série de filmes de ação há mais de 40 anos. Ele sempre é um lutador e sobrevivente.