ESPORTE, MODALIDADE ESPERANçA » Capoeira que salva Foi depois de conhecerem o esporte que Léo e Rodrigo conseguiram se livrar da criminalidade e da falta de perspectiva de vida

Publicação: 10/12/2018 03:00

Aos 8 anos, Leonardo Alexandre Barbosa, o Léo, 30 anos, começou a praticar capoeira. Conheceu na escola. O esporte tornou-se meio de disciplina, paixão e logo de fuga à realidade. “Minha infância foi difícil. Cresci numa casa de tábua, sem qualquer saneamento básico. Morávamos eu, minha mãe com seis filhos, só eu era filho do meu pai, que era alcoólatra e bebia todos os dias. Minha mãe saía para trabalhar de domingo a domingo para colocar só o almoço em casa. Não tinha café da manhã. Muitas vezes ia dormir sem jantar. Na minha infância, eu vivia mais aqui na casa da mestra (Shirley Guerreira, fundadora do Grupo de Capoeira Mãe Arte) do que em casa. Tinha semana de eu nem pisar em casa”, detalha. “Se não fosse a capoeira, eu acho que estaria morto”, acredita.

Na local que hoje virou a sede do Grupo de Capoeira Mãe Arte, Léo tomava café, almoçava, tomava banho e dormia. Os cerca de 40 alunos, entre 6 e 64 anos, nada pagam pelas três aulas semanais. “Cada um dá o que pode. Se puder, dá R$ 4 para ajudar a pagar a água, já está ótimo. Se não der, problema zero”, garante a educadora social e mestra.

Na roda de capoeira, os meninos se reúnem para ouvir e falar sobre o dia. Depois, vão para a luta. Os movimentos são simulações de ataque, defesa e esquiva entre dois capoeiristas. O objetivo do jogo é demonstrar superioridade em quesitos como a força, a habilidade, a autoconfiança e, sobretudo, através do gingado. Shirley orienta os movimentos. É do tipo espontânea. E carinhosa. Fala com os alunos com intimidade de quem conhece a fundo cada história. Dedica-se de corpo e alma à capoeira.

“Pago para dar aula. Desde que me entendo por gente, sou criada aqui e sempre vi a dificuldade que a comunidade tem. A maioria tem situação complicada. Alguns já se envolveram com drogas e já saíram, outros estou ainda tentando tirar. Muitos sofrem problemas familiares, com pais e mães alcoólatras”, lamentou. Shirley já perdeu vários alunos assassinados pelo tráfico.

Outros, ela lutou para resgatar. E venceu. “Um dia, vieram me falar que Léo estava usando drogas. Fui atrás imediatamente. Fiz de tudo para ajudar. Mas ele se envolveu com drogas, as piores: pedra (crack), pó (cocaína), maconha… depois começou a roubar. Pequenos furtos. Foi preso duas vezes, mas nunca deixei de estar ao lado dele”, afirmou Shirley.

“Se não tivesse conhecido a capoeira, não tivesse no meio de pessoas que me apoiavam, que davam amor quando precisava, jamais teria pensamento de sair das drogas e do crime. Quando a pessoa não conhece outra vida, fica naquela até morrer. Mesmo drogado ou na abstinência, você vai ter sempre uma luz no fim do túnel de vontade de voltar a ser o que era antes. Capoeira foi essa luz para mim”, disse Léo, hoje auxiliar de cozinha, empregado, casado, pai e sem usar drogas. “Hoje tenho minha casa toda na cerâmica. Se minha vida melhorar, estraga”, pontuou.
 
O resgate de uma vida
 
Berimbau, pandeiro e atabaque. Ginga e força. Rodrigo Pereira Nunes, 30 anos, o mestre Muganga, foi aluno da mestra Shirley desde os 7 anos de idade. Dos mais talentosos capoeiristas, habilitado em vários instrumentos musicais da arte, tornou-se um exemplo de superação. “Conheci a capoeira na escola através do Programa Escola Aberta. Achei interessante na escola, me interessei e entrei”, contou. Nunca mais saiu. Mas, tampouco resistiu às tentações do meio de uma comunidade violenta.

“Aqui na minha rua é um ponto de droga. Aqui no Campo do Onze é outro ponto. Quando eu vejo que os meninos estão com muita conversa com traficante, chego e tiro na dura mesmo. Mas eu não estou 24 horas por dia com eles”, lamentou Shirley. “Na escola, um colega levou uma arma e fiz os primeiros roubos. Fui apreendido uma vez”, contou Rodrigo. “Ele se afundou nas drogas mesmo”, lembra a mestra.

“Sempre tive família estruturada, meus pais não mexem com nada de errado. Só eu que pendi para esse lado devido à influência. No meu caso não foi necessidade, foi porque queria estar andando bem, com cordão de prata no pescoço”, revela Rodrigo. “Mas a capoeira nunca apoiou a gente com nenhum tipo de droga, até porque não condiz com a arte. A mestra sempre me aconselhou, correu atrás para me ajudar, continuou tentando e não desistiu. Sou muito grato a ela por tudo. Hoje, posso dizer que a capoeira foi meu resgate. E onde eu chego sou respeitado por ser o mestre Muganga. Divido minha história com os mais jovens e sou muito feliz em poder estar dando essa volta por cima, porque cada dia é uma batalha”, pontuou.
 
Prática antiga, esporte recente
 
Desde 2016, o Conselho Nacional do Esporte (CNE), vinculado ao Ministério do Esporte, formalizou a capoeira como esporte. A decisão a tira de um grupo considerado apenas como arte para ser também reconhecida como categoria esportiva. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) tendo a capoeira como objeto de estudo, o professor Henrique Gerson Kohl entende que a discussão é ampla.

“O Brasil com toda sua diversidade, dinâmica e contradições, dentre outros aspectos com suas interdependências, faz refletir na capoeira uma não determinação em uma única esfera, mas a deixa transitar, (res)significar, resistir e/ou aderir com diferentes configurações sociais, por isso não cabe um determinismo à capoeira”, explica.

Este ano, O Globo e a revista Superinteressante, que listou os esportes mais populares do país, estimaram que a capoeira tem seis milhões de praticantes. Oficialmente, porém, não há um registro do quantitativo exato de praticantes no país e no mundo. “Não existe censo oficial, mas posso dizer seguramente de maneira empírica reafirmada em visitas, notícias e vídeos, que a capoeira é uma das práticas sociais mais capilarizadas no Brasil e presente de maneira significativa em diferentes áreas do planeta. É uma prática social brasileira que acredito ser a mais capilarizada no mundo tendo em vista inúmeros eventos pelo planeta”, disse Kohl.

De acordo com o site do Itamaraty, 71 países têm rodas de capoeira registradas. Somente na Alemanha são 27. A capoeira surgiu no século 17, praticada por escravos africanos como uma mistura de luta, dança e música. Patrimônio cultural brasileiro desde 2008, reconhecida pela Unesco, em 2014, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a capoeira também se tornou no último mês de outubro Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco.
 
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A capoeira era usada como defesa, tanto por escravos, quanto por libertos, depois do fim da escravidão. Era considerada subversiva e até a década de 1930 foi marginalizada. A prática só foi reconhecida em 1937, depois que Mestre Bimba a apresentou ao então presidente Getúlio Vargas, que a declarou esporte nacional. “Temos correntes de discussão sobre a origem da capoeira, mas a maioria converge para culturas de origens negras. Diferentes povos deram sua contribuição, mas o núcleo afrodescendente deu a maior delas”, destacou o professor Henrique Gerson Kohl.