Auroras de tantas vidas, por respeito e por afeto Como tantas mulheres, a Rua da Aurora guarda não só beleza, mas se faz símbolo de resistência

Marília Parente
mariliaparente.pe@dabr.com.br

Publicação: 08/03/2016 03:00

Grupo reunido pelo Diário não poderia ser mais diferente e, no entanto, enfrenta dificuldades semelhantes (PAULO PAIVA/DP)
Grupo reunido pelo Diário não poderia ser mais diferente e, no entanto, enfrenta dificuldades semelhantes
A capacidade do calor em reunir partículas torna o dia vocacionado aos encontros. Uma rua chamada Aurora não poderia ter outro talento que não o da sedução de transeuntes, com seus banquinhos e vista para o rio, para uma conversa com quem passe, como uma mãe que pega o Recife no colo. Que venham os exemplos: Paula não precisou de muita conversa para empurrar a cadeira de rodas de Suely. Nathália trocou meia dúzia de palavras com Nádia até dar-lhe suporte do lado esquerdo do corpo, que a bengala não contemplou. Amanda, Valdimarta e Ju elogiaram a vista aos passantes. Paratleta, artista, lésbica, travesti, idosa, cabeleireira e empresária têm pouco em comum entre si e a Aurora, mas a diferença é, possivelmente, o principal motivo pelo qual se amparam.

Evangélica e mãe de duas, aos 24 anos, Valdimarta Vitor trocou o autoritarismo do ex-marido pela autonomia. “Ele não me deixava nem trabalhar. O Deus que eu acredito nos dá livre-arbítrio. Por que as mulheres não podem, por exemplo, abortar? Também é direito controlar nossa natalidade. Recentemente, convenci a pastora a levar camisinha feminina para a Igreja. Vou me encher de pílula? Engordar, ficar estressada? Depois os homens reclamam”, argumenta. Aprendeu a fazer oposição desde cedo, em cada ameaça de desapropriação no Coque, quando tratores tornavam concreta a especulação imobiliária que sempre teve como vizinha. Resiste. “Tem uma passagem da Bíblia que diz: 'não vos conformeis com esse mundo'”, explica.

Se Valdimarta precisou de um casamento para ter autonomia, a empresária Ju Cavalcanti a conquistou no mercado. “Sou a maior produtora, mulher, de música eletrônica do Brasil - e são pouquíssimas. Tem quem ache que você é incapaz. Por isso, o trabalho precisa ser perfeito e você deve estar maravilhosa sempre. Existe essa exigência. Não pode ser só competente”, diz.

O meio de trabalho acaba influenciando a visão de mulheres sobre elas mesmas. Foi ao tornar-se autônoma que a artista e designer Nathalia Queiroz sentiu necessidade de aprofundar-se no feminismo. “Precisava correr atrás das coisas, me articular com parcerias, desenvolver trabalhos. Comecei a discordar de algumas coisas. A democracia data de 500 anos a.C. e significa o 'poder para o povo'. Nessa época, quem era o povo? Os homens”. A pediatra Nádia Lins sabe bem disso. Hoje, completa 87 anos de vida – 71, no Recife, vinda de Fortaleza para estudar medicina. “Morei no Hospital Infantil até me casar. De lá, só saí vestida de noiva”. Longe dos pais, inclusive durante intercâmbio na Inglaterra conviveu diariamente com o machismo corporativo, mas seus valores foram moldados mais em função da independência do que do tradicionalismo. “Não vejo problema que as moças de hoje vivam com um rapaz o que elas quiserem antes de casar, que elas vistam o que desejar, que possam viajar sós. Ter as próprias experiências”.

Das unhas do pé pintadas de marrom à raiz dos cabelos loiros, Amanda Palha é mulher. Seu nome está cravado no topo do listão 2016 do curso de serviço social da UFPE, área na qual já atua. A familiaridade não evita a apreensão. “Em lugares mais pobres, as pessoas perguntam o que somos e convivem conosco. A maioria das travestis vive em situação de pobreza. Hoje, quando a gente entra na universidade, precisa lidar com o ‘politicamente correto’ da classe média, que evita piadas, mas não se aproxima. O círculo afetivo das pessoas não nos inclui, porque nunca existimos ali. É fundamental existir”, comenta.

Existir, por vezes, significava acostumar-se ao passo apressado nas ruas, às piadas dos homens e aos olhares de reprovação. “Sempre fui engajada com as questões LBGT. Apesar disso, meus relacionamentos amorosos sempre foram com homens. Quando conheci minha esposa, Carol, me apaixonei. Simples assim”, conta Paula Mascarenhas, completando que, às vezes, o “homem ao lado” impõe “respeito” às pessoas. “Não somos levadas a sério como casal. É comum homens fetichizando nossa relação, como se pudessem fazer parte dela”, diz.

Ser levada a sério sempre foi prioridade de uma das principais paratletas do país. Suely Guimarães perdeu as pernas aos 7 anos, após ser atropelada por um motorista bêbado em São José do Belmonte, no Sertão. A medalhista de três Jogos Paralímpicos fará do conhecimento, profissão, mesmo quando deixar de competir. “Colo grau no curso de educação física. As dificuldades foram muitas, mas superei, sem deixar de pagar nenhuma cadeira prática”.

Apesar de históricos tão distintos, essas mulheres possuem em comum a necessidade de fazer dos limites, conquistas. Também descartam qualquer possibilidade de resignação. As filhas da cidade com uma Aurora que resiste tentam garantir seus lugares – nenhum deles identificado enquanto “lugar de mulher”.