Assombrações made in Pernambuco Histórias de entidades soturnas e locais com histórias macabras resistem ao tempo e permeiam o imaginário popular do estado

João Vitor Pascoal
joaovitorpascoal.pe@dabr.com.br

Publicação: 27/08/2016 09:00

Enquanto as pessoas tiverem imaginação, existirão lendas. Para encontrá-las, o pernambucano não precisa atravessar fronteiras. O estado é repleto de histórias, da capital ao Sertão. Repassadas de geração a geração, normalmente com alguma “atualização”. “É aquela história: quem conta um conto, aumenta um ponto”, brinca o professor doutor em história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Severino Vicente da Silva.

Como define o poeta e editor Walter Ramos, “o realismo fantástico povoa a cabeça do pernambucano”, daí vem tantas histórias dos mais diversos tipos, em diferentes lugares. Em praças e parques, é preciso estar atento ao papa-figo. Já no Parque Dois Irmãos, as ruínas do Açude do Prata são habitat não de animais, mas da assombração fantasmagórica Branca Dias, judia acusada de bruxaria que deixou suas riquezas no açude antes de falecer.

As lendas também chegam à praia. Mais precisamente no Janga, no município do Paulista, Palhaço do Coqueiro observa a lua à noite. Ao andar pelas ruas dos bairros de São José e da Boa Vista, além da atenção para não ser assaltado, é aconselhável estar atento à presença do Cabileira, figura violenta que mata os transeuntes e foge pelo Rio Capibaribe.

O rio, aliás, contribuía com a realidade e ajudava na geração de novas lendas e histórias. “O Rio Capibaribe tem uma fama muito grande de ser mal-assombrado e as histórias eram voltadas para as pessoas que morreram afogadas ou que morriam jogando-se das pontes”, pontua o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) César Mendonça.

A vocação pernambucana para histórias surreais é extremamente rica e vem de séculos passados. “Maurício de Nassau, por exemplo, criou a história do Boi Voador para mobilizar a população e ela é absurda. Onde já se viu boi voar? Tem coisa que só aconteceu no Recife. A cidade tem uma história muito peculiar”, relata Walter Ramos.

Há ainda as lendas nacionais e até internacionais que ganham contornos e cenários locais. Em 2008, por exemplo, um suposto lobisomem aterrorizava o bairro de Cajueiro Seco, Jaboatão dos Guararapes, estampou as páginas do jornal Aqui PE. Na ocasião, até um cartaz foi espalhado pelo bairro para alertar os moradores e uma ronda foi organizada nas proximidades da estação do metrô, onde a “criatura” atuava.

“O caso da emparedada da Rua Nova, por exemplo, é uma história que tem várias correspondências com outros casos do Brasil e do mundo, de pessoas que colocavam familiares mortos dentro da parede de casa para ninguém notar que haviam morrido”, acrescenta Severino da Silva.

César Mendonça destaca que as lendas vão sendo reinventadas e não é raro que aproveitem supostos casos de crimes. “Lembro que, na década de 1990, havia a história do papa-figo motorizado, que sequestraria pessoas e tirava órgãos para transplantes ilegais”, conta Mendonça. Walter Ramos também tem uma memória semelhante no bairro da Várzea. “Na minha infância havia a kombi azul, que levava crianças para o papa-figo”, relembra. 

"Todos os povos têm suas lendas que fazem parte da identidade cultural, passam entre as gerações e são mudadas de acordo com a época vivida. As novas gerações terão novas lendas"
Severino Vicente, historiador da UFPE

"Com a internet surgem histórias como a do hambúrguer que seria feito de minhoca, ou a numeração no fundo da caixa do leite que indicaria quantas vezes ele foi reaproveitado"
César Mendonça, pesquisador da Fundaj

Assombrações para todos os lados

Personagens foram registrados na obra O livro ilustrado das assombrações de Pernambuco, de Walter Ramos e Daaniel Araújo

Papa-figo (assassino)
Local: Praças e parques
Usa presentes e doces para atrair crianças. A origem viria de um médico hemofílico da família Amorim, morador da Zona Norte do Recife. Por conta do estado de saúde, foi aconselhado a ter uma dieta rica em ferro e consumia muita carne vermelha e fígado.

Branca Dias (assombração)
Local: Ruínas do Açude-do-Prata, Parque Dois Irmãos
A judia do Recife, foi acusada de bruxaria e seria condenada em Portugal. Revoltada, jogou todas as joias no açude antes da viagem, porém, antes de partir, faleceu. Às noites, ronda as ruínas e assombra quem estiver por lá.

O Cabileira (assassino)
Local: Bairros de São José e Boa Vista
Um homem forte e violento que machuca e mata pessoas nas ruas da região central do Recife. Normalmente, busca os cidadãos indefesos e, após os crimes, foge pelo Rio Capibaribe.

Barão de Escada (assombração)
Local: Todo o estado
A lenda vem de Belmiro da Silveira Lins, tenente-coronel da Guarda Nacional e primeiro barão de Escada, assassinado em Vitória de Santo Antão. Anda por todo o estado coberto por um lençol ensopado de sangue.

Boca-de-ouro (assombração)
Local: Perto de bares
Anda em busca de pessoas solitárias na rua e pede que acendam-lhe um cigarro. Antes que o façam, dá uma gargalhada e exibe os dentes dourados, que lhe dão o nome, e continua perseguindo a vítima.

Padre sem cabeça (assombração)
Local: Ruas do estado, próximas a igrejas
Se a mulher que tem relações com o padre vira mula-sem-cabeça, o religioso se transformaria no Padre sem cabeça. Persegue as vítimas pagando penitência que perdurará por uma eternidade de assombração.

Nego D'água (entidade)
Local: Rio São Francisco
Protetor do rio, é uma entidade meio homem, meio anfíbio, que aborda pescadores e desatentos levando-os para dentro d'água. Para escapar e não morrer afogado, é aconselhável não ficar sozinho nas margens do rio.

Perna cabeluda (criatura)
Local: Região Metropolitana do Recife
É apenas uma perna que percorre todo o estado, principalmente os arredores do Recife. A história foi criada por Raimundo Carreiro em texto publicado no Diario em 1976. Programas de rádio e de TV encontraram “vítimas”.

Lobisomem (criatura)
Local: Todo o estado
Das lendas mais difundidas do mundo, em Pernambuco, o monstro invocado pelas luas cheias teria aparecido mais recentemente em ruas de Jaboatão dos Guararapes, sem que ninguém tenha conseguido filmá-lo.

João Galafoice (assombração)
Local: Litoral 
Um preto velho que assombrava marinheiros e estivadores na beira do mar. Prenunciava mudanças climáticas e tempestades. Corria com sua cabeleira brilhante e esvoaçada pela praia. Cabelos cor de fogo que podiam ser vistos à distância.

Acendedor de lampião da Ponte D’Uchoa (assombração)
Local: Ponte D’Uchoa
Características: Chefe da estação teria sido assassinado entre a Estrada do Arraial e Dois Irmãos. Sua alma seguiu atormentando os acendedores de lampião, que alegavam ver vultos e o fantasma.

Viraroupas: Fantasma Perverso (assombração)
Local: Zona Norte do Recife
Nunca visto, mas, dentro das casas, as roupas arrumadas à noite “amanheciam” numa cena de desarrumação. Famílias de Casa Forte, Poço da Panela e Casa Amarela acumulam histórias.

Mauricéia: A Menina que Virava Cabra (criatura)
Local: Mata Sul, Cabo de Santo Agostinho e Jaboatão
Inspirada em Portugal. Trata-se de uma mulher que, por bater na mãe, teria sido amaldiçoada pela mesma. Virava cabra durante e noite e só parava de andar pela manhã.

O Negro Velho que Andava em Fogo Vivo (lenda viva)
Local: Fogueiras de São João
Um homem capaz de andar sobre as brasas vivas da fogueira nas noites de São João. Relatos de Gilberto Freyre dão conta da presença do Negro Velho, que teria sido visto pelos próprios olhos do escritor.

A Mulher Emparedada (assombração)
Local: Rua Nova, bairro de Santo Antônio 
Trata-se do fantasma de uma filha que engravidou do namorado e, como punição, foi emparedada por seu pai. A origem da história é de um livro escrito por Carneiro Vilela e difundido na imprensa no início do século 20.

Cumade Fulozinha (entidade)
Local: Matas do estado
Trata-se de uma protetora das matas. Em versão índia ou cabocla, ela também poderia ajudar caçadores a encontrar presas em troca de oferendas, caso contrário, os desorientaria no meio da mata.

Palhaço do Coqueiro (assombração)
Local: Praia do Janga
Como o nome indica, fica em cima de coqueiros na praia, durante a noite, frustrado por não ter tido talento em vida para fazer as plateias rirem. Fica à espera do sorriso da Lua minguante para aliviar sua frustração.

Menina do Algodão (assombração)
Local: Banheiros de escolas e hospitais
Anda com algodões em seus ouvidos e boca, gerando sustos e desmaios por onde passa. Vários colégios e hospitais do estado acumulam relatos da aparição. Tem a Loura do Banheiro como releitura da lenda.

A Loira de Santo Amaro (assombração)
Local: Cemitério de Santo Amaro
Aparição recorrente no portão do Cemitério de Santo Amaro, no Recife. Se você pretende andar na rua do cemitério de madrugada, é melhor desistir ou arcar com as consequências.

O Velho Suassuna Pedindo Missa (assombração)
Local: Casa Forte, Recife
O fantasma do Visconde de Suassuna, um velho alto “tão branco a ponto de parecer todo ele um lençol que andasse sozinho”, diz Gilberto Freyre. Vagava pedindo orações por arrependimento dos maus-tratos aos quais submetia seus escravos.

Curiosidade
O livro Assombrações do Recife Velho de Gilberto Freyre é uma das principais fontes para obras sobre lendas da capital pernambucana, sendo considerada a referência do assunto no estado.