DIARIO NOS MUNICíPIOS - CABO » Talento moldado à temperatura de mil graus Ainda criança, Mestre Nena se agarrou ao barro e nunca mais o largou. Por anos, moldou filtros de água, as peças mais rentáveis da olaria. Hoje produz luminárias, jarros, pinhas e alguidares

Publicação: 19/06/2018 03:00

Mestre Nena tem andado rápido. Com o chão do Centro de Artesanato do Cabo tomado por cerâmicas, ele se move cuidadosamente pelas brechas entre os blocos de jarros, pratos, pilões e pinhas. Em frente ao balcão, tinge de branco peças cruas. Deixa secar. Pega quatro cumbucas e leva à sala dos fornos. Para as peças alcançarem o ponto desejado, detalha, serão expostas a mais de mil graus centigrados. A correria tem meta. Os artesãos do centro pretendem levar cerca de três mil peças para a Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), em julho, no Centro de Convenções de Pernambuco. É lá, na maior feira de artesanato da América Latina, que as oportunidades de negócio se multiplicam e o resultado do esforço de horas de criação e suor seduz os compradores. Ou, no mínimo, os curiosos. E a curiosidade, entende o mestre, pode ser o começo de tudo.

A curiosidade se uniu à necessidade na história de Nena. Ele, com 3 ou 4 anos de idade, acompanhou a mãe, recém-viúva, na mudança da Usina Mercês para o Mauriti, ambas localidades no Cabo. Nena era um dos cinco filhos de Maria José de Lima. O Mauriti seria o centro irradiador da produção da cerâmica artesanal no município. E o garoto acompanhou o processo. Ou melhor, esteve nele. Aos 7 anos, morava vizinho à Olaria de Celé, Celestino José da Mota Filho, hoje aos 79 anos. Por necessidade financeira, aproximou-se do lugar. Primeiro vieram os mandados. Ganhava centavos ao fazer pequenas tarefas, requisitadas pelos donos e empregados da olaria. O menino era curioso. Ao ter o espírito de curiosidade percebido por Celé, recebeu o convite para ser ajudante.

Convite recebido, convite aceito. Nena se agarrou ao barro e nunca o largou. Por anos, sobretudo, moldou filtros de água, as peças mais rentáveis da olaria. “Fazia 300 filtros por semana”, recorda. Era trabalho em excesso e dinheiro curto. Nunca se limitou aos filtros. Aprendeu a confeccionar  das telhas aos tijolos, dos vasos aos alguidares, das panelas às quartinhas. Aberto ao novo, o mestre viu a produção de cerâmica artesanal despencar diante da concorrência da indústria do plástico e do vidro, sentiu as pressões das novas políticas ambientais, com a proibição de extrair lenha nativa para os fornos, e as dificuldades de acesso às jazidas de barro a partir da administração do Complexo Industrial Portuário de Suape. Estabeleceu-se a crise, com tantos obstáculos.

Os ceramistas precisam reinventar-se. Organizaram-se. Em 1985, fundaram a Associação dos Ceramistas e Artesãos do Cabo, presidida inicialmente por Celé. Com a associação conseguiram resolver a questão da retirada do barro das terras de Suape. A retirada seria autorizada via contrato de comodato. A madeira nativa empregada nos fornos foi substituída por madeiras da construção civil. Mesmo assim, a crise prosseguiu. A produção voltou a cair. Já não se atendia às exigências do mercado e muitas olarias fecharam. No auge da produção cerâmica do Cabo, registrado no final dos anos 1970 e no começo dos anos 1980, a Olaria de Celé, por exemplo, empregava 56 pessoas. Eram oleiros, ajudantes, carregadores e motoristas.

A Olaria de Celé foi ponto de partida para muitos artesãos. Mesmo sem ter atuado no lugar que acolheu aprendizes e disseminou conhecimentos, Diego José Gomes, 36, reconhece o legado da olaria. Entre os últimos a chegar ao centro de produção artesanal, Diego trabalhava antes com pintura e grafitagem. Sua ida ao centro seria para serviços de pintura. Não havia planos para a cerâmica. Os segredos do barro, ele descobriu aos poucos. Quando se deu conta, estava inserido no mundo dos artesãos e das artesãs. Apaixonou-se a ponto de sonhar com novas peças.

Tal qual Mestre Nena, Diego já não separa a semana em dias úteis e de descanso. “A gente sente falta do barro nas mãos”, confessa, enquanto moldava uma jaca. Trabalha de domingo a domingo se a criatividade ou necessidade ordenar. E não pretende parar. Afirma, em nome desta pretensão, que abre mão de “fichado” em empresas, como ocorreu durantes as obras de expansão do Complexo Industrial e Portuário de Suape. Diego era pintor industrial. Como modelo para o futuro, o artesão enxerga Nena, a quem define como “paciente” e “mestre”.

De fato, a maestria em aceitar desafios guia os passos de Nena. O artesão integrava o grupo que, na crise, decidiu apostar na parceria com o laboratório O Imaginário, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e o Sebrae. Ouvia e seguia as orientações para criar peças. Neste período, a prefeitura construiu o centro que leva o nome do arquiteto Wilson Campos Júnior, entusiasta do projeto e falecido em 2005, antes da unidade entrar em operação. Isso em 2007. A estrada é longa, considera. Vieram as participações em feiras, a qualificação em novas técnicas, a instalação dos fornos a gás, os pedidos de empresas para produção de peças e os prêmios. Para Nena, veio especificamente o título de mestre. Desde 2016, ele integra a Alameda dos Mestres da Fenearte, espaço em que expõe suas criações. “Nunca pensei chegar tão longe”, disse. Chegou, disposto a ensinar o que aprendeu.

Perfis
 
Criação nos moldes

O primeiro emprego de Maria Aparecida de Brito Aciole, Cida, 42 anos, foi em uma cerâmica no Cabo. Tinha 17 anos. Vinda de Buíque, no Sertão, permaneceu na empresa por 18 anos consecutivos, tempo suficiente para desenvolver as habilidades com o uso do molde e do barro líquido, a barbotina. A olaria faliu e Cida ficou “sem chão”. Não sabia fazer outra coisa. Recebeu convites para trabalhos com cerâmica em unidades produtivas no Mauriti. Não teve interesse. A retomada ocorreu há sete anos. Soube de um treinamento do laboratório O Imaginário, da UFPE, e se inscreveu. Ao fim do curso, 12 participantes seriam escolhidos para a equipe de artesãos e artesãs do Centro de Artesanato do Cabo. Ela ficou entre os selecionados.

Arte figurativa
Quando pequeno, D’Melo Sena, 26 anos, criava os próprios brinquedos. Os objetos eram construídos com sucatas e barro. A argila era a matéria-prima para dinossauros, desejados pelos colegas. Cresceu fazendo arte. Esculpia. Escrevia em versos. Para não perder as ideias no campo das letras e da escultura, carrega um caderno e um lápis no bolso. “As ideias surgem quando menos esperamos”. Para ele, as peças estão em constante mudança. É o caso do escafandro-luminária. À medida que o artesão, mais identificado com o trabalho figurativo, se dedica a fazer o escafandro os detalhes vão sendo aperfeiçoados. “A variação das peças são sem fim”, complementou. E o teste de aceitação é um só. O teste da prateleira. Gostando da peça, os compradores levam.
 
Domínio do torno

Era 1975, quando Deoclécio José Mariano, Deó, se mudou de Frexeiras, em Escada, para o Cabo de Santo Agostinho. Tinha 30 anos e experiência em olarias e um histórico de andanças, ao lado do pai, em feiras das cidades e usinas da Mata Sul para vender os utensílios domésticos que produzia junto com o pai, Severino Mariano. Mudou-se a convite de Celestino José da Mota Filho, o Celé, para fabricar potes e caqueiras, o que não significou parar no tempo. “Inventei muita coisa”, ressaltou. Aposentado, Deó poderia optar por ficar em casa. Escolheu o contrário. O ofício de moldar jarros e outras peças fala mais alto para quem, ainda criança, aprendeu a moldar “cacos de água para passarinhos e cinzeiros”.