"Eu não tinha ideia do que era o machismo"

Publicação: 05/09/2019 03:00

Farmacêutica de formação, foi forçada a virar ativista após ver, na própria pele, o mal trazido pelo machismo enraizado na sociedade. Em 1983, quando ainda nem sequer existiam discussões sobre violência contra a mulher, ela sofreu a primeira tentativa de assassinato, com um tiro de espingarda disparado pelo ex-marido, Marco Antonio Heredia Viveros. A segunda tentativa ocorreu meses depois, quando o ex-marido a empurrou da cadeira de rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. Em entrevista ao Diario, a mulher que virou símbolo do combate à violência de gênero cobra mais empenho político para fazer a Lei nº 11.340 funcionar. Ela também critica os ataques às políticas de proteção à mulher.
Desde que a lei, batizada com seu nome, foi decretada, em agosto de 2006, Maria da Penha afirma ver avanços na igualdade de gênero, mas com “muitas dificuldades”. “Pela falta de compromisso de muitos gestores públicos, para que a lei seja devidamente implementada. Nas capitais, onde há mais estrutura, há essa implantação. Não sei se o machismo é mais forte no Nordeste, mas há a carência, principalmente no interior, de políticas públicas. Estamos tentando sensibilizar os prefeitos dos pequenos municípios a criarem um Centro de Referência da Mulher, dentro de uma unidade de saúde”, revela.

Entrevista - Maria da Penha // Farmacêutica
 
Obrigada a aprender

O entendimento sobre violência contra a mulher fui obrigada a aprender por ter sido vítima. Eu não tinha ideia do que era machismo e a violência doméstica. Vivi um relacionamento saudável até o momento em que meu companheiro se naturalizou brasileiro. Aí ele mostrou a verdadeira face. E eu não reconhecia mais aquela pessoa companheira, amiga, com que eu havia me relacionado. E não tive também a condição de sair desse relacionamento. Foi na mesma época dos casos de Doca Street (assassinou a namorada, Ângela Diniz, em 1976) e do cantor Lindomar Castilho (que tirou a vida da esposa, Eliana de Grammont, em 1981). Em Fortaleza, nem tinha delegacia da mulher quando sofri a primeira tentativa de homicídio. Meu caso foi em 1983 e a delegacia só veio em 1985

O primeiro ataque

Eu estava dormindo e acordei com um forte barulho dentro do quarto e não conseguia me mexer. Pensei ‘puxa, meu marido me matou’. Fui acudida pelos vizinhos e o meu agressor foi encontrado com uma corda no pescoço, sentado, na cozinha, com o pijama rasgado. A versão dele era de que quatro pessoas tinham tentado assaltar a casa. Passei quatro meses hospitalizada e, quando voltei para casa, as moças que trabalhavam comigo relataram que a vizinhança tinha dúvidas sobre a explicação dele. Elas tinham visto ele limpando uma espingarda no escritório quando eu estava fora de casa, coisa que eu não sabia. Aí que eu percebi que estava correndo risco.

Demonização do feminismo

A demonização do feminismo é o resultado do machismo na sociedade. No relatório da Organização dos Estados Americanos sobre o meu caso, há uma observação: ‘Toda cultura só se desconstrói através da educação’. Em algumas capitais brasileiras, através dos educadores sociais que trabalham a lei, as crianças já estão sendo sensibilizadas sobre. Nós, mulheres, queremos ter os nossos direitos respeitados, do mesmo jeito que respeitamos os direitos dos homens.

Reflexos da fama

Eu não tenho mais vida própria. Não posso mais ir a um supermercado, a um local de comércio grande, porque sou reconhecida. Fica muito difícil escolher uma roupa, algo assim. Minha família me protege dessa maneira, comprando o que preciso, para não me expor muito. Entendo o carinho das pessoas, mas fica muito difícil. Hoje eu vivo em função dessa causa. Quando viajo, muitos me procuram. Bom frisar que  não só de mulheres, mas muitos homens também.