Vida marcada com a arte Passagens literárias, poéticas, imagens de filmes, gravuras, arte: as tattoos são, muitas vezes, relatos públicos de dramas vividos em um mundo todo particular

Fellipe Torres
fellipetorres.pe@dabr.com.br

Publicação: 28/09/2014 03:00

Não é somente questão de modificar o corpo, colocar tinta sob a pele. Em várias épocas, em todo o mundo, tatuadores e tatuados produzem e interpretam significados os mais diversos. Jovens, velhos, ricos, pobres, homens, mulheres. Difícil é ser indiferente. Por um lado, a marcação da pele gera controvérsias e preconceitos. Por outro, ganha entusiastas fervorosos. Na busca pelo risco ideal, capaz de traduzir sentimentos, gostos e ideologias, uma das mais frequentes inspirações é a própria arte. O legado imaterial deixado por grandes mentes da literatura, das artes plásticas, do cinema, da música.

No corpo de um estudante alemão, a gravura criada pelo artista plástico Gilvan Samico – uma sereia com o sol nas mãos – eterniza a paixão por um Recife ensolarado, cultural, religioso. Na pele de uma jovem pernambucana, a letra da música resume a superação de paraplegia em decorrência de acidente. No braço do publicitário, o rosto do gênio do cinema é, na realidade, a lembrança e o carinho pelo pai. Nas costas do marido e na perna da esposa, o colorido de um hobby em comum.

Histórias assim tendem a se multiplicar neste fim de semana, quando ocorre a primeira edição da convenção de tatuagem Recife Tatto Arte (das 10h às 21h, no Círculo Militar do Recife, na Avenida Agamenon Magalhães, na Boa Vista), com participação de mais de 100 tatuadores. São artistas de oito estados. Entre as atrações, concurso de tatuagens com seis categorias, sorteios e lojas especializadas em bodyart.
Organizador do evento, o tatuador Henrique Brandão se destaca entre os colegas de profissão por adaptar pinturas de artistas como Joan Miró e Salvador Dalí.

Mas as referências às artes e à cultura pop nem sempre são bem planejadas. Tatuadores alertam para as decisões por impulso em um mundo em que as manifestações artísticas mudam rápido. “O modismo é algo presente nesse universo.
Às vezes um filme acabou de entrar em cartaz e a moçada já vem copiar a tatuagem do Vin Diesel ou de algum outro ator. Ou então escolhem o símbolo de bandas como Pearl Jam e Biohazard e depois se arrependem”, comenta Daniel Loureiro, da Recife Tatoo Shop. No cinema, os mais requisitados são Alice no país das maravilhas e O poderoso chefão. Na literatura, O pequeno príncipe.

A mudança de pensamento dos interessados em novas tatuagens fica clara quando morre algum ídolo da música, como foi o caso do cantor Chorão, em março do ano passado. “No calor da emoção, choveu gente aqui tatuando frases, trechos das músicas. Mas a gente sabe que pouco depois esse pessoal se arrepende. Em alguns casos, a pessoa volta para cobrir com outra tatuagem”, diz o tatuador Douglas Victor. O Viver reuniu histórias por trás das tatuagens capazes de imortalizar a arte no corpo e, a partir dos traços, dar mais corpo a toda forma de arte.

Caetano é o bicho

“Me expressa”

Clara Vasconcelos, 27 anos, administradora
A tatuagem: A capa do disco Bicho, de Caetano Veloso

Caetano significa muito pra mim! É um disco especial porque leva em capa arte de Caetano, desenho que já existia antes da escolha das canções e que diz muito sobre a obra. Tem Tigresa, Leãozinho, A grande borboleta, Gente... O disco é cheio de bichos! Ele escolheu usar o desenho a partir da constatação. Toda essa história me cativa! Tatuar a capa de Bicho foi uma forma de marcar na pele algo do qual eu sou feita e que, ao mesmo tempo, me expressa, já que eu trago comigo um tanto dos sons, das letras e das cores de Caetano e do disco”.

Recife na memória

“Um diário que lembra emoções”

Julian Hees, 26 anos, estudante, alemão. Esteve na cidade entre 2012 e 2013
A tatuagem: Uma gravura do pernambucano Gilvan Samico

Depois um tempo no Recife, tive a ideia de fazer uma tatuagem para lembrar a cidade. Elas são como diário, que lembram emoções, experiências. Um dia achei um livro ilustrado do Samico e me apaixonei pela arte dele. Gosto do estilo com linhas claras, marcantes e ‘limpas’. Também um pouco abstrato, simples, mas difícil de fazer. Os detalhes das gravuras são muito finos. Já conhecia a arte popular pernambucana, mas Samico é único. Achei que seria boa tatuagem, pois representaria um pedaço da cultura nordestina, que para mim era muito nova e interessante. A sereia é criatura fantástica de um mundo fantástico, um pouco como o Brasil, que é um lugar maravilhoso. Gostei do fato de estar segurando o Sol nas mãos. Venho do norte da Alemanha, onde o clima é chuvoso. Durante a estadia no Brasil, o Sol e o mar mudavam o estado mental, me deixavam feliz. Além disso, simboliza Iemanjá, a mãe de tudo, e me lembra o que aprendi a respeito do candomblé e de um ritual a que assisti em um terreiro. Minha tatuagem também simboliza como religiões africanas são hostilizadas e os negros são oprimidos em toda a história do Brasil.”

Paixão antiga

“Enfim, a verdade”

Ravena Souza, 25 anos, arquiteta
A tatuagem: O quadro
A noitada esnobe da princesa, de Joan Miró

Quando eu fazia a oitava série, uma professora de artes levou livros de vários pintores para estudarmos. Entre eles, tinha um de Miró. Foi identificação imediata. No momento em que vi esse quadro, já quis tatuá-lo, mas era muito nova e minha mãe resistiu. Fiquei com essa vontade reprimida dentro de mim. Antes de fazer esse quadro, ainda fiz outra tattoo, menor. Precisava de coragem para me riscar tanto. O que me fez escolher essa pintura foi a simplicidade, as cores, a liberdade, a individualidade, as relações... Enfim, a verdade”.

Marca da superação

“Quando ninguém acreditava, consegui”

Maria Eugênia Bispo, 28 anos, jornalista
A tatuagem: a frase “quem acredita sempre alcança”, em referência à música Mais uma vez, de Legião Urbana

Minha primeira tatuagem foi nas costas, ‘In pursuit of happiness’, que tem a ver com um período da minha vida em que fui morar fora do país. Nessa ocasião, conheci essa música, que me marcou muito. Essa outra, mais recente (‘quem acredita sempre alcança’), tem a ver com um acidente que sofri na academia, há um ano, que me deixou paraplégica. Fiquei um mês no hospital. Um aluno meu me mandou essa música e disse que sempre lembrava de mim quando ouvia. Todas as vezes em que eu estava para baixo, meus pais cantavam para mim. Então, no dia em que voltei a mexer os dedos dos pés, decidi fazer o registro. Tatuei essa data junto com o ‘quem acredita sempre alcança’, porque, quando ninguém acreditava que eu recuperaria os movimentos, eu consegui. Hoje, voltei a andar”.

Cinema afetivo

“Ele me lembra meu pai”

Vinícius Coutinho, 28 anos, publicitário
A tatuagem: imagem do cineasta Charlie Chaplin caracterizado como o personagem Vagabundo

Quando eu era criança, meu pai me mostrou alguns filmes de Charlie Chaplin, e eu me apaixonei de imediato. Cresci sendo grande fã da obra do artista. A tatuagem do ‘vagabundo’ foi a minha terceira. Hoje tenho mais nove pelo corpo, mas essa é especial porque representa minha paixão pela arte e indiretamente lembra meu pai.”

Versos lusitanos

“Forma de relembrar Portugal”

Naia Lua, 24 anos, consultora
A tatuagem: um verso do poeta José Chagas

A vontade de enraizar vivências nas viagens levou a estrofe de José Chagas tatuada no braço esquerdo. Após dois anos em Portugal, era recorrente a sensação de gratidão e pertencimento. Quando percebi que o ciclo pelas terras lusas estava perto de encerrar, encontrei na tatuagem uma maneira que me faria relembrar o que vivi e os valores que pretendia carregar. Por isso, a estrofe: “quem pelo mundo se erra / e morre e nasce de novo / é filho de cada terra / é filho de cada povo”. Cada lugar por onde passei e que por mim passou trouxe aprendizado. Cada terra. Povo. A escolha não foi aleatória. Já o tinha encontrado há anos e escrito em um caderninho. Quando precisava resumir as vivências e fechar um ciclo, ele veio à tona. E à pele”.

Hobby em família

“No meio  da tatuagem,  quero incluir minha filha”

Alexandre Cróccia, analista administrativo
A tatuagem: heróis de HQs

Desde guri lia muito gibi, revista de super-herói. Há uns oito anos, descobri esse mundo de carrinhos e bonecos colecionáveis. Depois de juntar vários, minha esposa começou a curtir essa ideia, e passou a ser um hobby compartilhado por nós. Ela fez uma tatuagem da personagem Electra na perna e eu comecei a fazer o Thor e a Tempestade ‘fechando’ minhas costas, mas ainda não está tudo pronto. Faltam duas sessões. No meio da tatuagem, quero incluir o nome da minha filha, Ynddra Lua, que tem tudo a ver, pois significa deusa das chuvas e dos trovões. Ela está com 13 anos e já aprendeu com os pais a curtir esse universo. É viciada em livros de literatura fantástica, como Jogos vorazes e Divergente”.

Entrevista >> Alex Farias, tatuador há nove anos e jurado do Recife Tattoo Art

“Para você colocar algo no corpo, tem que ser algo de grande importância na sua vida. Sempre aconselho clientes a não tatuar algo que possa gerar arrependimento no futuro”

No cotidiano, como as pessoas geralmente escolhem as próprias tatuagens?
As pessoas vêm com tatuagens sem nenhum sentido. Para mim, isso não tem nexo. Para você colocar algo no seu corpo, tem que ser algo de grande importância na sua vida. Sempre aconselho os clientes a não tatuar qualquer coisa que possa gerar um arrependimento no futuro.

Tatuagens com referência a pinturas e cultura pop são comuns?
São muito comuns em convenções, porque o tatuador quer fazer algo que impressione. Então escolhe algo com referência a artistas, cantores, atores, cenas de filme. No dia a dia, por outro lado, não é tão comum. Só de vez em quando um fã aparece querendo marcar o corpo.

Como enxerga o mercado?
A tatuagem está evoluindo a cada ano, em termos de equipamentos, materiais, nível de profissionalismo. Hoje encaramos como arte. O corpo é uma tela viva que leva o nosso trabalho por toda a vida do cliente. Infelizmente existe muito aventureiro, sim. As associações batalham muito para impedir que essas pessoas causem prejuízos. Amadores usam equipamentos baratos, que estragam a pele, e também não têm nível artístico. O principal fator a ser observado é o da biossegurança, algo que é prioridade entre os profissionais.

Você veio ao Recife para ser jurado na convenção de tatuagem. Como exercer esse papel?
Existe toda uma parte teórica em relação a linhas, pintura, sombreado, anatomia, princípios básicos do desenho em si. Além disso, é preciso observar a categoria da tatuagem, que tem muita coisa específica, a exemplo da quantidade de cores utilizadas. Vários tatuadores desconhecem as regras, e a gente tenta orientar. Mas o julgamento depende de cada jurado, varia muito.