O clube da brodagem No dia de encerramento do Festival Janela Internacional de Cinema, uma pesquisa acadêmica a cujo texto o Viver teve acesso mostra o quanto as relações de brodagem entre os cineastas catapultaram a produção dos filmes no estado

Luiza Maia
Colaborou Larissa Lins
luizamaia.pe@dabr.com.br

Publicação: 02/11/2014 03:00

No dia de encerramento do Festival Janela Internacional de Cinema, uma pesquisa acadêmica a cujo texto o Viver teve acesso mostra o quanto as relações de brodagem entre os cineastas catapultaram a produção dos filmes no estado (DESVIA/DIVULGAÇÃO)
No dia de encerramento do Festival Janela Internacional de Cinema, uma pesquisa acadêmica a cujo texto o Viver teve acesso mostra o quanto as relações de brodagem entre os cineastas catapultaram a produção dos filmes no estado


Brodagem é um termo frequente nos bastidores e rodas de conversa do cinema pernambucano. Desde a retomada, com Baile perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, fala-se dessa cooperação. A proximidade é impulsionada, por um lado, pela amizade entre os realizadores, e, por outro, pela necessidade financeira compulsória diante do esquema de guerrilha dos projetos de baixo orçamento.

A gíria vem de uma substantivação abrasileirada da palavra brother (irmão, em inglês) e virou tema de pesquisa acadêmica. A brodagem no cinema em Pernambuco é o título da tese da doutora em comunicação social Amanda Mansur. Ela, por sinal, já atuou como assistente de direção em Vigias (2010), de Marcelo Lordello, e em Eu vou de volta (2007), de Camilo Cavalcante e Cláudio Asis.

“Esse esquema da brodagem surgiu quando não havia sistema de incentivo. Era a única forma de produzir, devido à deficiência financeira, técnica e de equipamento. Para hoje, ficou a solidariedade”, analisa Camilo Cavalcante, cujo primeiro curta, Hambre hombre, é de 1996. Para ele, a proximidade dos cineastas não torna os filmes monotemáticos. “O grande trunfo é que os filmes têm a cara do realizador. Cada um se coloca de forma muito autoral”, argumenta. A proximidade, aliada a prêmios nacionais e internacionais, impulsiona ainda o diálogo com o poder público. O exemplo mais pictórico foi o encontro dos realizadores com o ex-governador Eduardo Campos, em 2013, no qual ele prometeu a Lei do Audiovisual, já em vigor.

As relações de proximidade vêm desde o Ciclo do Recife, quando o cineasta Edson Chagas alternava afetos e desafetos com Gentil Roiz, Ari Severo, Pedro Salgado Filho e outros realizadores, e se estendem aos cineastas mais jovens, com interseções entre as gerações. Gabriel Mascaro (Ventos de agosto) e Daniel Aragão (Prometo um dia deixar esta cidade), dois filmes exibidos no Festival Janela deste ano, por exemplo, foram apelidados de “colônia de férias” pela equipe de Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes). “Eles diziam que a gente estava de brincadeira, mas era mentira. A gente trabalha muito”, brinca o então estagiário Mascaro.

Os corredores da Universidade Federal de Pernambuco servem como ponto de partida para as inquietações audiovisuais desde os primórdios da Retomada, com Baile perfumado (1997), dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas e com roteiro de Hilton Lacerda. No campus, surgiram o Vanretrô, em 1985, a Símio, em 2001, e a Trincheira, em 2004.

Ze Carlos Machado, Sergio Marone e Bianca Joy em Prometo um dia deixar esta cidade, de Daniel Aragão (PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO)
Ze Carlos Machado, Sergio Marone e Bianca Joy em Prometo um dia deixar esta cidade, de Daniel Aragão


O Vanretrô era formado por Lírio Ferreira, Adelina Pontual, Valéria Ferro, Cláudia Silveira, Patrícia Luna, Andréa Alves, André Machado, Samuel Paiva, Solange Rocha e Ana Conceição. Cláudio Assis estudava economia, mas participava dos encontros a convite da namorada, Solange. Paulo Caldas já produzia curtas e era uma espécia de guru do grupo. A Símio foi criada por Marcelo Pedroso, Daniel Bandeira, Gabriel Mascaro e Juliano Dornelles. A Trincheira reúne Leonardo Lacca, Tião e Marcelo Lordello.

Todo mundo se conhece. As conexões são várias. Para ajudar a entender a brodagem nos bastidores da produção pernambucana, elaboramos um infográfico com parcerias profissionais dos cineastas. Os causos ficam para encontros, corredores do Cinema da Fundação e mesas de bar, nos diversos endereços da Rua Mamede Simões, CEP do Central e afins…

Sete marcas

Consultamos o crítico Alexandre Figueiroa, integrante do Conselho da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema, para apontar traços marcantes da
produção local:

O cinema pernambucano da geração de nomes como Cláudio Assis e Lírio Ferreira tem um olhar mais naturalista sobre a vida, as pessoas e seus conflitos. O enredo, em alguns títulos, é abordado sob uma perspectiva quase documental.

O sertão, suas agruras, peculiaridades e herança cultural, são recorrentes, assim como a adaptação entre o rural e o urbano, que fortalecem a identidade regional.

A periferia urbana também é cenário recorrente, com problemáticas sociais e econômicas que dialogam com os dilemas íntimos dos personagens.

Nomes como Daniel Aragão, Kleber Mendonça e Daniel Bandeira representam outra característica da produção pernambucana: os filmes autorais, que não abrem concessão a clichês.

A intimidade da classe média - hábitos, ascendência e rotina - é ponto em comum entre títulos recentes, como em O Som ao redor.

O estereotipo arcaico e preconceituoso do nordestino pernambucano não tem vez no cinema local. Os personagens assumem identidade moderna, inseridos em um Pernambuco contemporâneo, desenvolvido.

A cidade, além de cenário, é personagem. O Recife não costuma ser mostrado com poesia, como ponto turístico. Problemas e contradições são revelados, expondo as fragilidades da vida cosmopolita, os abismos econômicos entre as classes, os desafios da rotina urbana.

Em O som ao redor, de Kleber Mendonça, família de Bia (Maeve Jinkins) janta e Amigos de risco passa na TV (CINEMASCÓPIO/DIVULGAÇÃO)
Em O som ao redor, de Kleber Mendonça, família de Bia (Maeve Jinkins) janta e Amigos de risco passa na TV

Janela

Premiado como melhor filme no Festival do Rio, Sangue azul é o destaque do Janela deste domingo. O filme de Lírio Ferreira fala sobre uma família desfeita sob o receio de um incesto e o reencontro, anos depois, quando da passagem de um circo pela ilha paradisíaca onde ela vive. As cenas foram gravadas em Fernando de Noronha. Daniel Oliveira encarna um homem bala.

Veja outros filmes:

No Cine São Luiz
11h - Roberto Carlos em ritmo de aventura
15h - A filha de Ryan
18h50 - Noturno em récife maior
20h - Sangue azul

No Cinema da Fundação
14h30 - Não me esquece
16h30 - A gangue
19h- J’entends plus la guitare
21h10 - Love steacks

O mapa das conexões

A gíria vem de uma substantivação abrasileirada da palavra brother (irmão, em inglês) e virou tema da pesquisa acadêmica de Amanda Mansur

01 Chá
LÍRIO FERREIRA com PAULO CALDAS
A primeira experiência de Lírio foi no curta Chá (1987), de Caldas. Dirigiram Baile perfumado (1997) e os clipes Sangue de bairro (Nação Zumbi), Táxi lunar (Geraldo Azevedo), e Leviana (Reginaldo Rossi).

02 Sangue azul
LÍRIO FERREIRA
com RENATA PINHEIRO
Ambos trabalharam com Sérgio Oliveira (marido de Renata), roteirista de Sangue azul (2014) e Árido movie (2006), de Lírio, e de Amor, plástico e barulho (2013). Ela é diretora de arte de Árido movie.

03 Cartola
LÍRIO FERREIRA com HILTON
Diretores e roteiristas de Cartola (2006), são parceiros desde Baile perfumado (o roteiro é dos dois). Hilton assina o texto de Árido movie (2006), com Sérgio Oliveira.

04 Baile perfumado
PAULO CALDAS
com HILTON LACERDA
Os dois cineastas estavam envolvidos na produção considerada marco da Retomada do cinema pernambucano, Baile perfumado.

05 Deserto feliz
PAULO CALDAS
com MARCELO GOMES
Paulo dividiu com Marcelo e Karim Aïnouz o roteiro de Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo. Esse retribuiu coescrevendo o texto de Deserto feliz (2007).

06 A história da eternidade
HILTON LACERDA com MARCELO GOMES e CAMILO CAVALCANTE
Figurinha repetida, Irandhir Santos está em A história da eternidade (2014), de Camilo, Cinema, aspirinas e urubus (2005) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Marcelo, e Tatuagem (2013), de Hilton, além de Amigos de risco (2007, Daniel Bandeira), Décimo segundo (2007, Leonardo Lacca), O som ao redor (2012, Kleber Mendonça Filho), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2012), de Cláudio Assis.

07 Febre do rato
CLÁUDIO ASSIS
com HILTON LACERDA
Roteirista da maioria dos longas de Claudão, Hilton assinou Amarelo manga (2003), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2012), além do curta Texas Hotel (1997).

08 Amarelo manga
RENATA PINHEIRO
com CLÁUDIO ASSIS
Renata foi um dos 13 responsáveis pela direção de arte de Soneto do desmantelo blues (1993). Fez ainda Texas Hotel (1997), Amarelo manga (2003), Baixio das bestas (2006) e Febre do rato (2012)

09 Soneto do desmantelo blues
CLÁDIO ASSIS
com ADELINA PONTUAL
Junto a Marcelo Gomes, os dois criaram, na década de 1990, a produtora Parabólica Brasil. A ligação vem desde Soneto do desmantelo blues (1993), de Cláudio, com argumento dela e perpassa outros curtas.

10 Tatuagem
RENATA PINHEIRO
com HILTON LACERDA
A diretora assinou a direção de arte de Simião Martiniano: O camelô do cinema (1998), curta dele em parceria com Clara Angélica. A dobradinha se repetiu em Tatuagem (2013), estreia de Hilton com longas.

11 Cinema,
aspirinas e urubus
MARCELO GOMES
com DANIEL ARAGÃO
Antes de estrear como diretor
em curtas e no longa Boa sorte,
meu amor (2012), Aragão
trabalhou em Cinema, aspirinas
e urubus (2005), como Juliano Dornelles e Gabriel Mascaro.

12 Pacific
DANIEL ARAGÃO
com MARCELO PEDROSO
Aragão respondeu pela finalização do segundo longa de Pedroso, Pacific (2009), e também pela fotografia do curta Bloco da saudade (2008).

13 Big jato
CLÁUDIO ASSIS
com LEONARDO LACCA
Ambos apostaram no talento da brasiliense Maeve Jinkings, a nova “Hermila” da cena. Ela está em Big jato, de Cláudio, e Seu Cavalcanti, de Leonardo Lacca, ambos em produção, após ser premiada em Amor, plástico e barulho.

14 Amigos de risco
MARCELO PEDROSO
com DANIEL BANDEIRA
Fundadores da Símio Filmes, criada em 2001, com Gabriel Mascaro e Juliano Dornelles, responsável por Amigos de risco (2007), KFZ-1384 (2008), Pacific (2009), e Um lugar ao Sol (2009).

15 Vinil verde
DANIEL BANDEIRA
com KLEBER MENDONÇA FILHO
Parceiros no curta A menina do algodão (2002). Bandeira coescreveu o roteiro e fez som de Vinil verde (2004) e o som de Eletrodoméstica (2005). Kleber editou o som de Amigos de risco (2007).

16 Contratempo
DANIEL BANDEIRA
com GABRIEL MASCARO
Parceiros de Símio Filmes, da qual Mascaro saiu em 2010. Este produziu o curta Contratempo (2004), de Bandeira.

17 KFZ-1348
MARCELO PEDROSO com GABRIEL MASCARO
Os dois fizeram juntos KFZ-1348, conduzido a partir da história de um Fusca 1965. A montagem é de Bandeira. Antes, veio o curta Sementes do Brasil (2004).
18 Baixio das bestas
GABRIEL MASCARO
com CLÁUDIO ASSIS
Mascaro foi assistente de direção de Cláudio em Baixio das bestas (2006). À época, com 23 anos, tinha assinado apenas três curtas.

19 Sob a mesa
GABRIEL MASCARO
com MARCELO LORDELLO
Após o experimental Sob a mesa (2003), com Leonardo Lacca, na época da faculdade, Mascaro fez ponta de ator e participou do roteiro de Fiz zum zum e pronto (2008).

20 Ela morava na frente do cinema
LEONARDO LACCA
com MARCELO LORDELLO
Lordello esteve em projetos de Lacca como Interferência (2004), Einseistein (2006), Décimo segundo (2007) e o longa Ele morava na frente do cinema (2011), na fotografia e outras funções.

21 Eles voltam
LEONARDO LACCA com TIÃO
Amigos da época do ensino médio, no colégio São Luiz, fundaram, junto com Marcelo Lordello, a Trincheira Filmes, em 2004, de Vigias (2010), Ela morava na frente do cinema (2011) e Eles voltam (2012).

Entrevista Amanda Mansur

“A brodagem resulta em maior liberdade criativa”

 

Quando você começou a reparar que essa brodagem era uma característica da produção pernambucana?
Desde quando comecei a me interessar e trabalhar com produção audiovisual em Pernambuco. Quando ingressei no curso de Rádio e TV na UFPE foi no momento que os grupos como a Símio e a Trincheira estavam se formando nesse esquema brodagem de produzir. Os cineastas das diferentes gerações e atuantes no estado concordam que há um modo “brodagem” de se produzir em Pernambuco, mas afirmam que os caminhos autorais de cada são distintos.

Quais as vantagens dessa produção impulsionada por relações amicais?
Acho que podemos ver isso nos filmes. Desde Baile perfumado, os filmes pernambucanos têm tido destaque no cenário nacional e internacional, por suas propostas estéticas e frescor narrativo. Creio que essa brodagem gera uma segurança entre os cineastas o que resulta numa maior liberdade criativa.
Você defende a tese de uma busca por afetividade nos filmes...

Defendo que o suporte da produção e o da qualidade do cinema em Pernambuco está vinculado a uma comunidade de afetos que permite a eclosão dos filmes. Por laços de amizade, afetos, valores e sentimentos compartilhados, os cineastas configuram grupos articulados em torno de uma estrutura social da brodagem. Os filmes se configuram como uma atuação articulada num mesmo momento histórico e inseridos em um mesmo cenário sociocultural e por um programa de trabalho comum. Afeto que tem a ver com os espaços do Recife e extrapola, como faíscas que pulsam nos filmes.

Como acontece?
Todas essas pessoas e todos esses lugares configuram uma comunidade de afetos, que se representa através do cinema. Isso é comprovado nas análises fílmicas, em que se percebe, na construção de cenas, um conhecimento prévio das relações, ou simplesmente uma quebra da narrativa, como em Árido movie, de Lírio Ferreira, quando a personagem Soledad faz menção ao filme Deserto feliz, de Paulo Caldas, e em O som ao redor, de Kleber Mendonça, quando na cena do jantar na casa de Bia, na TV da sala passam trechos de Amigos de risco, de Daniel Bandeira. Determinadas marcas afetivas nos filmes são abrangentes, para ser percebidas por qualquer espectador. Outras são internalizadas. Só quem tem acesso ao sentimento do grupo pode vê-las. São filmes carregados de marcas para o consumo interno do próprio grupo.