As mil e uma faces de Lampião A trajetória do cangaceiro nordestino Virgulino Ferreira já foi levada inúmeras vezes ao cinema brasileiro - a mais recente é a versão musicada de Alceu Valença, exibida no Cine PE na próxima sexta-feira

Júlio Cavani
juliocavani.pe@dabr.com.br

Publicação: 03/05/2015 03:00

Virgulino Ferreira (1898-1938), vulgo Lampião, iniciou a carreira no cinema antes mesmo de morrer. Como retratou o filme Baile perfumado (1996), o cotidiano do cangaceiro pernambucano foi filmado pelo documentarista libanês Benjamin Abraão no início da década de 1930. Aquele foi o primeiro de uma série de filmes que até hoje continuam e continuarão a retratar suas aventuras pelo Sertão nordestino. A trajetória cinematográfica ganha continuidade com A luneta do tempo, musical dirigido por Alceu Valença, que será exibido em Pernambuco pela primeira vez na próxima sexta-feira, no Cinema São Luiz, no encerramento do festival Cine PE - o longa entra em cartaz no circuito comercial no fim de setembro.

No filme de Alceu, Lampião é interpretado por Irandhir Santos, que assume uma grande responsabilidade não só pela importância do personagem, mas também porque ele já foi interpretado por renomados atores do cinema nacional, como José Wilker, Nelson Xavier, Leonardo Villar e Luiz Carlos Vasconcelos. As roupas e o chapéu de couro são mais ou menos os mesmos (até porque os filmes são inspirados em imagens e documentos históricos), mas a personalidade do cangaceiro muda a cada nova interpretação.

Para quem viveu na década de 1980, a imagem de Nelson Xavier é bastante forte no imaginário coletivo, já que ele emprestou o rosto a Virgulino Ferreira em dois produtos de sucesso: a minissérie Lampião e Maria bonita, exibida pela Rede Globo em 1982, e a comédia O cangaceiro trapalhão, lançado nos cinemas em 1983. Na década de 1990, Luiz Carlos Vasconcelos assumiu o posto em Baile perfumado, filme-símbolo da retomada do cinema pernambucano.

Em décadas anteriores, Leonardo Villar havia sido um dos intérpretes mais marcantes, pelo filme Lampião, o rei do cangaço (1964). No clássico O cangaceiro, de 1953, premiado no Festival de Cannes, Virgulino oficialmente não aparece. O líder dos cangaceiros é um personagem fictício, inspirado em Lampião, chamado Galdino Ferreira, vivido pelo ator Milton Ribeiro. No consagrado Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Lampião também não é retratado (Othon Bastos é o protagonista no papel de Corisco).

Wilker foi Lampião no filme Canta Maria, de 2006, filmado em locações na Paraíba e em Pernambuco. Quando morreu, em 2014, o ator se preparava para viver o Padre Cícero. Ele também já interpretou outras mitos históricos nacionais, como Antônio Conselheiro, Juscelino Kubitschek e Tiradentes.

Ao lado de Hermila Guedes, que assume o papel de Maria Bonita no filme A luneta do tempo, Irandhir Santos compôs um Lampião mais doce do que a maioria das interpretações anteriores. Apesar de cantar e recitar versos em todas as cenas, ele conseguiu criar um cangaceiro bastante fiel ao homem real, já que Virgulino não ficou conhecido apenas pela violência, mas também pela boa educação e pela elegância.

Para consultar

Três livros para entender melhor o cangaço

Cangaço: O nordestern no cinema brasileiro
de Maria do Rosário Caetano
Editora Avathar

O cangaço no cinema brasileiro
de Marcelo Dídimo
Editora Annablume

Estrelas de couro - A estética do cangaço
de Frederico Pernambucano de Mello
Editora Escrituras

Em torno do cangaceiro

Alceu queria trabalhar em cima desse mito que é tão próximo nosso, que é o do Lampião bravo, o valente, mas que, ao mesmo tempo, é o amoroso, o perfumado. Foi uma experiência incrível.”
Irandhir Santos, Lampião no filme A luneta do tempo

Lampião estava mais para Don Corleone do que para os bandidos mexicanos cafajestes dos filmes hollywoodianos. Ele falava sussurrado e seduzia todos os coronéis do Sertão. Era homem de palavra. Espero ainda ver no cinema esse Lampião sereno e calmo. O Lampião que eu recuperei de dezenas de depoimentos, de pessoas que conviveram com ele durante meses, era alto, moreno, calmo e bem educado. Muito bem trajado e perfumado. Estava mais para o camponês espanhol do que para o caipira do interior de São Paulo. Ainda não vi o filme de Alceu, mas, pelas fotos, não tenho dúvidas de que foi feita pesquisa rigorosa em relação às roupas. Tenho críticas a Luiz Carlos Vasconcelos porque ele criou um tipo meio debochado. Os historiadores partem da realidade para a realidade. Os diretores de cinema, da realidade para a ficção.”
Frederico Pernambucano de Mello, autor do livro Estrelas de couro: A estética do cangaço

O melhor é Nelson Xavier, que passou bem a forma como falava, apesar de nem ser ator nordestino. Também gostei bastante de Leonardo Villar no clássico Lampião, o rei do cangaço.”- Cleonice Maria, presidente da Fundação Cultural Cabras de Lampião
É inexplicável o fato de o cinema brasileiro chegar à temática do cangaço apenas em 1953, quando a literatura, através de autores como Franklin Távora ou José Lins do Rego, já formara um ciclo: o cangaceiro, personagem indispensável no romanceiro popular do Nordeste, passara ao romance nordestino com todo o complexo místico e anárquico”.
Glauber Rocha (1939-1981), diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol, no livro Revisão crítica do cinema brasileiro

Lampião foi personagem central em poucos filmes, dentre os 50 realizados. Mas alguns atores se tornaram ícones do gênero ao representar a figura do cangaceiro diversas vezes. É o caso de Milton Ribeiro, que depois de encarnar Galdino em O cangaceiro, trabalhou em vários filmes sobre o tema. E Maurício do Valle, que tornou imortal o caçador de cangaceiros Antônio das Mortes nos filmes de Glauber Rocha e foi o mais atuante no gênero, com mais de dez produções. É importante lembrar que nomes importantes do cinema enveredaram pelo tema na pele de personagens cangaceiros: Othon Bastos, Alberto Ruschel, Leonardo Villar e Anselmo Duarte; e os comediantes Amácio Mazaroppi, Grande Othelo, Ankito, Ronald Golias e Os Trapalhões. Não tenho preferido. Cada um teve ou tem a importância nos filmes de cangaço, encarnando personagens distintos em momentos diferentes, que enriqueceram a história do gênero.”
Marcelo Dídimo, professor e pesquisador, autor do livro O cangaço no cinema brasileiro

25 filmes que reconstituem o cangaço

Lampião, o rei do cangaço (1950)
O cangaceiro (1953)
O primo do cangaceiro (1955)
Os três cangaceiros (1959)
A morte comanda o cangaço (1960)
Três cabras de Lampião (1962)
Lampião, o rei do cangaço (1964)
Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1964)
Memória da cangaço (1965)
Cangaceiros de Lampião (1967)
Maria Bonita, rainha do cangaço (1968)
Meu nome é Lampião (1969)
Corisco, o diabo loiro (1969)
Deu a louca no cangaço (1969)
Quelé do Pajeú (1969)
A chegada de Lampião
no Inferno (1970)
A vingança dos doze (1970)
O último dia de Lampião (1975)
O cangaceiro trapalhão (1983)
Baile perfumado (1996)
Corisco e Dadá (1996)
O cangaceiro (1997)
Canta Maria (2006)
Aos ventos que virão (2012)
A luneta do tempo (2014)

Programação do CinePE

O que vai passar no festival no domingo e na segunda-feira 

DOMINGO

Mostra competitiva de curtas-metragens pernambucanos (Mostra PE):
Xirê (PE) (ficção). Direção: Marcelo Pinheiro, 16’23
Salu e o Cavalo Marinho (PE) (Animação). Direção: Cecília da Fonte , 13’35”

Mostra competitiva de curtas-metragens nacionais (Mostra Curta Brasil):
Alegria (RJ) (Ficção). Direção: Hsu Chien Hchin, 15’
Intervalo

Mostra competitiva de longas-metragens:
O vendedor de passados
(RJ) (ficção). Direção: Lula Buarque, 85’

SEGUNDA-FEIRA

Mostra competitiva
de curtas-metragens pernambucanos
(Mostra PE):
O Gaivota (PE) (animação). Direção: Raoni Assis, 7’
Mostra competitiva
de curtas-metragens nacionais (Mostra Curta Brasil):
Palace Hotel (MG) (documentário). Direção: Cao Guimarães, 5’
Vestibular (SP) (Ficção). Direção: Toti Loureiro e Ruy Prado, 22’

Intervalo

Mostra competitiva
de longas-metragens:
Cavalo Dinheiro (Portugal) (ficção). Direção: Pedro Costa, 104’

Falou Lampião

"Venho lhe afirmar que foi a primeira pessoa que conseguiu me filmar com todo o meu pessoal de cangaceiros, filmando assim todos os movimentos da nossa vida nas caatingas dos sertões nordestinos. Outra pessoa não conseguiu, nem conseguirá e nem mesmo eu consentirei mais."

Trecho de carta de Lampião endereçada ao cineasta Benjamin Abraão

Serviço

Mostras de filmes do Cine PE 2015
Quando: 19h
Onde: Cine São Luiz (Rua da Aurora, 175, Boa Vista, Recife)
Ingressos: R$ 4 (inteira) e R$ 2 (meia)

entrevista >> Maria do Rosário Caetano

No livro  Cangaço: O nordestern no cinema brasileiro (Avathar), a crítica, jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano (meadiadora dos debates no Cine PE) reúne artigos que discutem a forma como os cangaceiros foram retratados em filmes nacionais. Lista mais de 50 filmes que retratam cangaceiros, a maioria longas-metragens. A questão também foi abordada em O cangaço no cinema brasileiro (Annablume Editora), do cearense Marcelo Dídimo, que divide os capítulos em: Primórdios. O Nordestern, Comédias, Documentários,
O cangaço de Glauber Rocha e Releituras.

O que achou da caracterização de Lampião feita por Alceu Valença com Irandhir?
Alceu é um poeta desabrido, um louco encantado. Ele mesmo conta que, de início, Hermila Guedes (Maria Bonita) reagiu às “maluquices” dele. Ficou cabreira. Já Irandhir mergulhou de cabeça e de primeira nas vontades do compositor-memorialista-cineasta. O resultado, até porque Hermila também resolveu mergulhar nas coordenadas, é fascinante. Como o Lampião de Alceu é mítico, quem derrama violência no filme é Antero Tenente, magistralmente interpretado pelo ótimo Servílio de Holanda, outra glória da arte da representação.

Quais foram os melhores intérpretes de Lampião?
O mais paradigmático e recorrente foi Milton Ribeiro (1921-1972). Ele interpretou Galdino, no filme de Lima Barreto (O cangaceiro, matriz principal do nordestern), inspirado, claro, em Lampião. Depois passou por outros filmes de cangaço. Nunca se libertou do papel do bandoleiro de cara dura e violento. Nelson Xavier, na TV, foi muito bem. Leo Villar, grande ator, não deixou saudades como Lampião, mas sim como Zé do Burro e Matraga. Um ator talhado para personagens complexos. O Wilker de Canta Maria foi muito bem caracterizado, mas a narrativa baseada no excelente romance sergipano, Os desvalidos (Francisco Dantas), centrou-se em triângulo amoroso distante do cangaço. O Lampião de Irandhir, em mais um excelente desempenho deste ator excepcional, é aparentado com o Corisco de Othon Bastos, em Deus e Diabo na Terra do Sol. Fernando Meirelles, de Cidade de Deus, gosta de evocar atores que têm força especial nos olhos (eye-ligth). Irandhir pertence a essa categoria. Imanta nossa atenção, nos magnetiza com seus olhos e gestos econômicos. Seu Lampião é assim: diz muito com muito pouco.

Você tem um preferido?
Milton Ribeiro, porque compôs como ninguém a figura do Lampião sangue-no-olho, e Irandhir, numa composição em tudo oposta, paradoxalmente até delicada. Destaco, também, o belo trabalho de Luiz Carlos Vasconcelos em Baile perfumado.

Algum ficou mais marcado no imaginário brasileiro?
Acho que o de O cangaceiro, com Milton Ribeiro. Mesmo se chamando Galdino, todo mundo sabia que ele era Lampião e que Maria Clódia (Vanja Orico) era Maria Bonita. Lima Barreto só trocou os nomes, deduzo, para não ter problemas com os herdeiros.