O duelo do século ganha as telonas

Fellipe Torres | Pedro Siqueira edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 24/03/2016 03:00

 (WARNER BROS/DIVULGACAO)
Antes de se reunirem para formar a Liga da Justiça, os dois heróis mais populares da DC Comics se enfrentam em uma batalha épica. Com todo o respaldo cinematográfico da Warner, Batman vs Super-Homem: A origem da justiça estreia, hoje, com a missão de abrir caminho para o coletivo da DC, no rastro do sucesso da franquia Os Vingadores, da rival Marvel. O longa-metragem de 153 minutos aproveita o bom momento dos dois protagonistas na telona %u2013 O homem de aço (2013) arrecadou quase US$ 670 milhões e O cavaleiro das trevas ressurge (2012) chegou a US$ 1 bilhão. Para esquentar o clima do confronto, o Viver preparou análises dos super-heróis e traz resenha crítica de um dos filmes mais aguardados do ano pelos fãs de histórias em quadrinhos.

Affleck, um morcego quase aposentado

Batman é um herói incomum. Ao contrário dos parceiros da Liga da Justiça, da DC Comics, não possui superpoderes ou habilidades sobre-humanas. Seu trunfo é o alto intelecto, o treino nas mais variadas artes marciais e, claro, a polpuda conta bancária – com a qual financia a tecnologia que é a maior aliada no combate ao crime. Criado em 1939 por Bob Kane, o personagem é o alter ego de Bruce Wayne. Quando criança, testemunhou o assassinato dos pais. O evento traumático despertou a aversão a armas de fogo e a vontade de lutar contra os vilões da sombria Gotham City, antítese da ensolarada Metrópolis, lar de Superman.

Ao longo de mais de mais de 70 anos, o Cavaleiro das Trevas já enfrentou vilões icônicos, como o enigmático Charada, o jocoso Pinguim e seu arqui-inimigo, Coringa. O “palhaço do crime” foi introduzido em 1940, como criação de Bill Finger, Jerry Robinson e do próprio Bob Kane. Na telona, o Coringa teve representações icônicas de Jack Nicholson, em 1989, e Heath Ledger, em 2008. O último mostrou uma versão anarquista psicótica do Coringa, descrito como “um homem que só quer ver o mundo pegando fogo”. Em Batman – O cavaleiro das trevas, também é levantada a questão de Batman e Coringa serem dois lados da mesma moeda, e não tão diferentes como se imagina. “Para eles, você é apenas um maníaco, como eu. Eles precisam de você agora, mas quando não precisarem, vão expulsá-lo, como um leproso”, diz Ledger em uma das cenas. A mais nova versão do vilão, agora interpretado por Jared Leto, será apresentada já em Esquadrão Suicida, que estreia em agosto.

Na cultura pop, a figura misteriosa de Bruce Wayne sempre causou atração. Muitos fãs o adoram justamente pelo fato de ele lutar ao lado de gigantes usando apenas superartefatos como o batmóvel, o batrangue e batgranadas, para citar alguns. Uma das representações mais celebradas pelos fãs é a série de HQs The dark knight returns (1986), assinada por Frank Miller, de Sin City. A trama mostra um Batman já aposentado, em um futuro alternativo no qual Gotham é assolada por gangues de mutantes, o que obriga o Cavaleiro das Trevas a voltar ao combate ao crime. No fim, Superman, que se aliou ao governo norte-americano, é chamado para intervir nas ações de Batman em Gotham, o que resulta em uma pancadaria entre os dois. O Homem-Morcego vence, mas com alguns truques na manga. Primeiro, ele utiliza uma armadura reforçada, similar à mostrada nos trailers de Batman vs. Superman, que permite o combate mano a mano com o filho de Krypton, além de armas feitas com Kryptonita, principal fraqueza do “herói alienígena”.

Nos cinemas, Wayne já foi interpretado por Adam West, Michael Keaton, Val Kilmer e George Clooney, mas nenhum deles chamou tanto a atenção quanto Christian Bale. Feito que Ben Affleck deve querer superar. Quando foi anunciado que o Homem-Morcego seria recriado nas telonas, as primeiras perguntas foram: Mas por que tão cedo? O último filme, O cavaleiro das trevas ressurge, é de 2012. Além disso, as duras críticas dos fãs à escolha do novo justiceiro encapuzado, em grande parte motivadas pela atuação de Affleck como Demolidor (2003), personagem de HQs da Marvel.

Mas de lá para cá, Batman deu novo fôlego à carreira de Affleck, que estava em pausa desde Garota exemplar (2014). Agora, ele enfrenta de cabeça erguida seu teste de fogo, e já deu bons sinais que está realmente comprometido com o personagem. Em entrevista ao talk show de Jimmy Fallon, ele afirmou: “Você não pode ficar falando tudo aquilo antes de um filme ser lançado. Não importa o que você pense”. E é aí que entra a metalinguagem, a batalha de Batman contra Superman não é apenas ideológica. É a milenar disputa de luz versus escuridão, homem versus Deus, e pode representar a redenção de Affleck aos olhos dos fiéis fãs dos quadrinhos.

Batman

Origem

Filho do casal milionário Thomas e Martha Wayne, o pequeno Bruce testemunhou o assassinato dos pais pelo assaltante Joe Chill. A experiência traumática o levou a viajar o mundo aperfeiçoamento técnicas de artes maciais e combater o crime sem o uso de armas de fogo. Em Batman begins (2005), é estabelecido que ele usa a figura de um morcego para aterrorizar os vilões.

Vida social
Milionário, playboy, bon vivant e mulherengo, Wayne é figura recorrente nas festas da alta sociedade de Gotham. Mas embora se venda como um ricaço inconsequente, sabe exatamente tudo que se passa por dentro das Indústrias Wayne. Já teve relações amorosas com a Mulher Maravilha e Selina Kyle, a Mulher-Gato.

Habilidades
Apesar de não ter superpoderes, Wayne conta com habilidades de detetive, conhecimento científico e preparo físico para enfrentar vilões. Nos quadrinhos e até nos filmes, é citado que Bruce aprendeu diversas formas de artes marciais viajando pelo mundo. Conta ainda com uma série de equipamentos variados como o batmóvel, a batwing e o batrangue.

Fraquezas
Apesar de lutar ao lado de gigantes, Batman é apenas um humano, sujeito a esgotamento físico e emocional. Além de carregar o peso da morte dos pais, sua história é marcada por mais tragédias, como a morte do Robin Jason Todd, na saga A death in the family, publicada de 1988 a 1989. Além disso, ele é ligado a personagens como o mordomo Alfred, que frequentemente acabam em apuros.

Cavill, o Homem de Aço colocado em xeque

A origem alienígena do Super-Homem, por si só, seria capaz de levantar suspeitas por parte dos reles mortais a respeito das intenções de um dos heróis mais populares da história. Dotado de um leque de poderes sobrenaturais, o Homem de Aço conseguiu, no entanto, ser adorado ao invés de temido. Ao menos na maior parte do tempo. Antes de ganhar as principais características pelas quais seria lembrado por várias gerações, o sobrevivente do planeta Krypton foi concebido, em 1933, pela dupla de quadrinistas Joe Shuster e Jerry Siegel, como um vilão manipulador de poderes psíquicos com a intenção de dominar a humanidade.

Após ser repensado algumas vezes por seus criadores, o personagem assumiu a forma de benfeitor, e passou a fazer sucesso a partir de 1938. Desde então, ganhou inúmeras adaptações para o cinema, rádio, televisão, literatura e videogame. No combate ao crime, Super-Homem era bem mais agressivo e menos preocupado com as consequências do uso dos próprios poderes. Com o passar das décadas, desenvolveu um senso moral mais apurado, mas, ainda assim, não se livrou de questionamentos existenciais, como fica claro na revista Precisa haver um Superman? (1972), cujo enredo o acusa de prejudicar o “desenvolvimento natural da humanidade”.

De todo modo, o ícone da cultura pop nunca deixou de ser repensado e, gradualmente, tornou-se o repórter Clark Kent, a persona assumida quando não está vestido com as cores da bandeira norte-americana para salvar o mundo da criminalidade e do caos causado por muitos malfeitores. Filho do cientista Jor-El, foi colocado em um foguete e enviado à Terra, onde aterrissou na cidade de Smallville e foi adotado pelo casal de fazendeiros Martha e John Kent.

Embora seja descrito como “último filho de Krypton”, ao longo da trajetória do personagem surgiram outros sobreviventes do planeta natal, como sua prima Kara Zor-El (depois conhecida como Supergirl). O criminoso General Zod foi aprisionado em uma dimensão-prisão, a Zona Fantasma, pouco antes da destruição de Krypton, e se tornou um dos grandes inimigos do Homem de Aço após sua libertação. Além disso, toda uma cidade, Kandor, foi miniaturizada e roubada pelo vilão Brainiac antes do planeta explodir.

A lista de inimigos é bastante longa, embora o antagonista mais recorrente seja Lex Luthor, representado de várias maneiras ao longo das décadas, desde um cientista empenhado em se vingar do herói, até o presidente corrupto de um conglomerado chamado Lexcorp. Também já atravancaram seu caminho figuras como Bizarro, Superciborgue, Darkseid, Apocalipse, Parasita, Conduíte, Imperiex, Dominus, Erradicador, entre outros.

Além de combater todos eles, Kal-El (como foi batizado, originalmente) luta contra a própria solidão, ao se ver diferente de todos os humanos, e precisa lidar, ainda, com a tentação de não se enxergar como um deus imbatível (não confundir com o conceito de “übermensch”, do filósofo Friedrich Nietzsche, com frequência traduzido como “super-homem”). Essa fragilidade está no centro de Batman vs Superman.

O embate entre os dois, como devem imaginar os espectadores mais incautos, poderia decorrer de certo recalque por parte do Homem Morcego (não no sentido freudiano, mas no de Valeska Popozuda, como sinônimo de inveja). Afinal, enquanto o primeiro se vale de inúmeros equipamentos para compensar a falta de habilidades sobrehumanas, o segundo é dotado de superforça, velocidade, visão com raio-X como fonte de calor, super audição, capacidade de voar etc. Embora a vaidade seja um elemento inegável na personalidade dos dois, esse não é o principal fator em jogo.

No cinema, já interpretaram o Homem de Aço os atores Kirk Alyn, Christopher Reeve, Georges Reeves, Brandon Routh, Henry Cavill (atual titular do papel). Em seriados, constam nomes como Dean Cain (Lois & Clark) e Tom Welling (Smallville).

Superman

Origem
Nasceu no planeta Krypton, foi batizado pelos seus pais de Kal-El. Foi mandado à Terra por seu pai, Jor-El, momentos antes de o planeta explodir. O foguete aterrissou na cidade de Smallville e foi encontrado pelos fazendeiros Jonathan e Martha Kent. Com o avançar da idade, Clark (nome dado pelos pais adotivos) descobriu que tinha habilidades diferentes dos humanos.

Vida social
Clark Kent leva uma vida normal como repórter do jornal impresso Planeta Diário, publicado diariamente na cidade de Metrópolis. É colega de redação do fotógrafo Jimmy Olsen e da jornalista Lois Lane, com quem se envolve romanticamente e acaba por revelar sua identidade secreta. Com frequência é atormentado pelo chefe, Perry White. Mantém forte ligação com os pais.

Habilidades
Descrito como “mais rápido que uma bala, mais poderoso do que uma locomotiva, capaz de saltar prédios altos em um único salto”. Com a evolução do personagem, o arsenal de poderes teve mudanças, incluindo superforça, invulnerabilidade, super velocidade, poder de visão
(raios-x, calor, telescópico, infravermelho e microscópica), superaudição e superrespiração.

Fraquezas
É vulnerável à kryptonita verde, resíduos minerais de Krypton transformado em material radioativo pelas mesmas forças que destruíram o planeta. A exposição à radiação anula os poderes do Super-Homem e o imobiliza, causando dores e náuseas. A exposição prolongada pode causar a morte. O único material na Terra capaz de protegê-lo da kryptonita é o chumbo.

A origem da Justiça é um ótimo passatempo

Batman vs Super-Homem: A origem da justiça é um filme corajoso em diversos aspectos e problemático em tantos outros. Dirigido por Zack Snyder, se apropria de narrativas clássicas da DC Comics sem deixar de assumir uma personalidade marcante, seja do ponto de vista estético ou ideológico. Parece ecoar as intenções e, ao mesmo tempo, prestar tributo à Era de Bronze dos quadrinhos norte-americanos, nas décadas de 1970 e 1980, quando as publicações se tornaram mais sombrias e passaram a ter roteiros mais amadurecidos. No longa-metragem, essas características se somam à disposição para abordar temas densos, como a corrupção de governos e organizações, o terrorismo global com acesso à mídia, o limite entre polemização e manipulação da opinião pública por parte dos meios de comunicação e até questionar algumas devoções religiosas.

Esteio para o surgimento da Liga da Justiça, o filme recorre às origens dos próprios protagonistas para colher os elementos da trama. Os pais de ambos, por exemplo, exercem papéis-chave no confronto entre os heróis. Outras questões pessoais entram em jogo, como a motivação obsessiva de Batman (Ben Affleck) por deixar um legado definitivo, após 20 anos de combate ao crime. A princípio, a questão primordial, obviamente, é o extermínio do Super-Homem (Henry Cavill). E aí começam os problemas do longa.

De fato, há um questionamento legítimo da função social do Homem de Aço, com referências diretas à HQ Precisa haver um Superman? (1972). Mas, vamos combinar, o Batman não tem nada a ver com isso. Os dois lados da briga deveriam ser, de um, a opinião pública, a mídia, o governo, e, do outro, o Super-Homem. O contra-argumento natural para isso são as armadilhas terroristas de Lex Luthor, interpretado por Jesse Eisenberg, um personagem incômodo, deslocado e sem brilho.

Para quem torceu o nariz com receio de Ben Affleck estragar um personagem clássico da DC, pode mudar o alvo e se preparar para um vilão pouco convincente. Ver Batman lidar com outro antagonista psicótico depois do brilhante Coringa (Heath Ledger) de O cavaleiro das trevas (2008) foi um passo arriscado. Agora, com o filme em cartaz, podemos dizer, é um desastre. Outro ponto negativo (nesse caso, já esperado) é a aposta em um final em aberto, na tentativa de atrair público para os próximos filmes da franquia.

E, aqui, é o momento ideal para recuar no uso da expressão “roteiros mais amadurecidos”. Se esta realidade marcou os gibis de quatro décadas atrás, deixa a desejar no longa de Snyder. Com muitas pontas soltas, cenas picotadas e incompetência para as reviravoltas no roteiro, o filme é bacana e provavelmente será um bom passatempo para quem assisti-lo. Mas quem nasceu para Batman, não deveria se contentar em ser morcego. O filme poderia ir muito além.