Amigos da arte De Naná a Elba Ramalho, as parcerias se tornaram parte indissociável de Alceu, como evidencia a segunda reportagem da série sobre o setentão

Larissa Lins
larissalins.pe@dabr.com.br

Publicação: 27/06/2016 03:00

No alto, Alceu, Zé Ramalho, Elba e Geraldo Azevedo (também ao centro). À esquerda, com Naná (MARCIA MOREIRA/DIVULGAÇÃO)
No alto, Alceu, Zé Ramalho, Elba e Geraldo Azevedo (também ao centro). À esquerda, com Naná
Rio de Janeiro, 1975. Era a primeira noite de dois fins de semana de apresentações na cidade. Alceu Valença divulgava o show Vou danado pra Catende, que lhe renderia o álbum Vivo!, gravado no Teatro Tereza Rachel, na capital carioca, e lançado em 1976. Cortinas afastadas, o pernambucano avistou poucas poltronas ocupadas na plateia. Considerou devolver os valores dos ingressos, mas decidiu levar adiante o espetáculo, cantando para um pequeno punhado de gente. Na noite seguinte, ninguém compareceu. O fracasso de bilheteria despertou a engenhosidade: com uma cartolina, improvisou megafone e convocou a banda para sair às ruas, convidando o público a assistir ao show. Zé da Flauta tocava saxofone enquanto Alceu bradava: “Esse doido aqui vai fazer show no Tereza Rachel hoje à noite! Ouçam o doido! Estou chamando vocês!”. Duas emissoras de televisão e uma revista flagraram a cena. “Nos filmaram e fotografaram. Eu com o sax, Alceu com o megafone de papel, a banda atrás de nós. À noite, o teatro estava lotado. Terminamos estendendo a temporada por dois meses”, lembra Zé da Flauta, amigo de Alceu desde os anos 1960. Para ele, a recordação sintetiza a excentricidade e o exercício criativo ofertado aos parceiros do músico.

O perfil agregador de Alceu teria sido, dizem companheiros de estrada, fundamental em projetos como O grande encontro e Asas da América - o primeiro, de repertório inspirado no cancioneiro popular nordestino, e o segundo, dedicado ao resgate do frevo. “Quando concebemos o encontro dele com Elba, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, soubemos que daria certo assim que Alceu topou. Ele sempre intermediou as relações, agregou os amigos com senso de liderança e diplomacia, carisma”, conta André Buarque, ex-empresário do músico e idealizador d’O grande encontro. “Naquela época, minha relação musical era mais intensa com Geraldo e Zé, mas eu já circulava na vida de Alceu. Era amiga e fã dele. Os efeitos do nosso encontro foram bombásticos. Guardadas as proporções, parecia uma turnê dos Beatles em versão brasileira”, diz Elba Ramalho.

Na rotina de Alceu, o gosto por ganhar palcos e estradas acompanhado por amigos permanece. “No mês passado, tivemos uma temporada de 15 dias em São Paulo para shows acústicos e resolvemos alugar um apartamento grande, hospedar toda a equipe. Alceu se lembrou muito do início da carreira, lá pelos anos 1970, quando fazia o mesmo”, diz a esposa, Yanê. O músico acumulou, nos mais de 40 anos de atuação, parceiros como Naná Vasconcelos, Jackson do Pandeiro, Zé Ramalho, Zizi Possi, Fagner, Zeca Baleiro, Maestro Spok e, mais recentemente, a Orquestra Ouro Preto, com a qual lançou Valencianas (2014).

Para Geraldo, a primeira das mais importantes parcerias da trajetória de Alceu, a personalidade dele - definida pelo amigo como combinação experiência, imaginação e criatividade - enriquece a criação artística dos que o acompanham. “Fomos apresentados no Rio. Na noite seguinte, compusemos nossa primeira música juntos, Talismã. Ele era mais novo, mas contribuiu muito com meu trabalho. Eu era tímido, ele era mais cênico, me ajudou a expor mais de mim, a criar meu personagem no palco”, lembra Geraldo. “Participamos juntos de festivais, lançamos nosso primeiro disco juntos também, Quadrafônico. Somos parceiros até hoje, nos telefonamos. Não bastassem as afinidades musicais, nos parecemos fisicamente. Me confundem com ele e, na verdade, nós dois somos como irmãos”, diz.

Marcantes

Quadrafônico, 1972 // Primeiro disco gravado por Alceu foi em parceria com Geraldo Azevedo. Levava o nome por ser o primeiro registro fonográfico no formato sonoro quadrafônico, gravado em quatro canais.

Asas da América, 1980 // O projeto pretendia modernizar e resgatar o frevo tradicional. O caruaruense Carlos Fernando, ex-Movimento de Cultura Popular, foi o idealizador, agregando artistas como Alceu, Geraldo Azevedo, Jackson do Pandeiro, Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.

O grande encontro, 1996 // Alceu, Zé Ramalho, Elba e Geraldo Azevedo dividiram o palco por um semestre. Gravado ao vivo, O grande encontro foi lançado em julho, com Sabiá, Dia branco, Talismã e Tesoura do desejo. Em 1997, Geraldo, Elba e Zé fizeram o segundo volume do projeto, sem Alceu.

Valencianas, 2014 // Cavalo de pau, Coração bobo e La belle de jour estão no álbum Valencianas (2014) com roupagem sinfônica. O projeto foi lançado em CD e DVD. É fruto de parceria entre Alceu e a Orquestra Ouro Preto.

E a seguir

Amanhã, o coração bobo
se perde na embolada artística do músico, transitando de táxi lunar pelos campos do cinema, da literatura e dos projetos musicais que estão por vir.

Depoimentos

“Alceu é e sempre foi um homem muito sábio, de posicionamentos sólidos e poder de decisão incrível sobre si próprio, a carreira, o que gosta de fazer. O que mais me encanta é a inteligência, o bom humor. Sou grata a Deus por ser amiga dele”

Elba Ramalho, cantora

“Nós nos conhecemos nos anos 1960, frequentando a casa de Lula Côrtes, no Recife. Quando fiz frevo para o Asas da América 3,  Alceu disse ‘fiz uma letra para essa sua música’, e declamou os versos
que seriam da clássica Como dois animais. Que música fantástica!”

Zé da Flauta, músico

“No tempo dele de acadêmico, começou a fazer músicas, me pedia ajuda com os arranjos, se inscrevia nos festivais. É o maior intérprete da música nordestina atual. Tenho muita estima por ele”

Maestro Duda

Fala, Alceu

Entre os artistas com quem já trabalhou, algum exerce influência mais determinante sobre sua produção?
Todos contribuem, nós nos influenciamos. Mas, mesmo entre as referências musicais da minha infância, não tenho ídolos. Luiz Gonzaga, por exemplo, é uma referência, somos produtos do mesmo meio. Mas, se me prendo ao legado de alguém, não posso ser autêntico, livre, eu mesmo. Nelson Ferreira tomava uísque com meu pai, em nossa casa no Recife. Ele me influenciou muito. O artista precisa focar nele mesmo, não pode ser fã de ninguém. Quem tem que ser fã do artista é o público.

Poderia citar momentos em que o trabalho em parceria foi divisor de águas em sua carreira?
O grande encontro foi um projeto marcante. Estreitou a relação entre a minha produção e as de Geraldo, Elba e Zé. Nós mostramos a música popular nordestina ao Brasil e o povo adorou. Houve o projeto Asas da América. Eu jamais havia gravado frevos até Carlos Fernando me convidar para o Asas. Gravei, por exemplo, O homem da meia-noite, isso me marcou muito.