Quadrinhos fantásticos Nova leva de HQs independentes produzidas por artistas do Nordeste busca inspirações em lendas urbanas, histórias de horror da literatura universal e narrativas futuristas

Júlio Cavani
juliocavani.pe@dabr.com.br

Publicação: 05/06/2016 03:00

Ficção científica, sobrenaturalidade e terror, temas situados no campo do fantástico, conduzem uma nova safra de livros de histórias em quadrinhos recentemente produzidos por artistas de cidades do Nordeste. A independência criativa e a imaginação inventiva estão entre as características em comum de Cidade motor (Salvador), Lovenomicon (Natal), Lavagem (João Pessoa) e A rasteira da perna cabeluda (Recife), já disponíveis em livrarias.
As quatro são publicações com acabamento de primeira, em formato de graphic novel, lançadas por selos locais ou editoras independentes, alguns com apoio de leis de incentivo. É um tipo de produção que não existia na região em décadas passadas, mas hoje chega com força total ao mercado nacional de literatura em quadrinhos.
“O país foi o último a abolir o trabalho escravo e será um dos últimos a abandonar o petróleo. Como a escravidão, a estupidez energética permanecerá em nossos corpos, saberes, fazeres e instituições por anos, décadas, séculos a fio”. O texto de abertura de Cidade motor já insinua que o livro baiano é uma ficção científica bastante crítica em relação à sociedade atual.
Com desenhos de Bruno Marcello e texto de Camilo Fróes e Moreno Pacheco, Cidade motor retrata Salvador em um futuro não muito distante, quando a lógica automotiva transformou a vida na cidade em um caos, enquanto a elite vive em construções flutuantes. A protagonista é uma frentista que se envolve acidentalmente em uma conspiração política, passa a ser perseguida e se refugia em um grupo de rebeldes.
Em Lovenomicon, sete artistas do Rio Grande do Norte produziram seis histórias em quadrinhos livremente inspiradas no universo fantástico e aterrorizante do escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), conhecido como HP Lovecraft. Não são adaptações, mas histórias novas, inéditas, que assumem influências do autor e chegam a mencioná-lo nos diálogos dos balões.
Apesar de editorialmente ser um livro, o projeto assume uma postura de fanzine (magazine feita por fãs), já que as histórias são intercaladas por artigos sobre a obra de Lovecraft. Os contos são creditados como “casos”, sempre com a aparição pontual de criaturas monstruosas. Os roteiros são “testemunhos”. Os desenhos são “reconstituições”. Os desenhistas e roteiristas são Rodrigo Xavier, Leander Moura, Renato Medeiros, Carlos Alberto, Marcos Guerra, Mário Rasec e Marcos Garcia, frequentadores da K-Ótica, livraria e selo editorial de Natal, cidade transformada em cenário das sombrias histórias.
Roteirista e desenhista de Lavagem, Shiko é um dos quadrinistas mais produtivos da Paraíba (e um dos grandes nomes do Brasil), autor de graphic novels como Blue note, O azul indiferente do céu, O quinze (adaptação da obra de Rachel de Queiroz), A boca quente e Piteco: Ingá (produzida a convite de Maurício de Souza).
Já levada ao cinema em um curta-metragem com atores, dirigido pelo próprio Shiko em 2011, Lavagem utiliza elementos de humor e horror para narrar o encontro entre um “pastor evangélico diabólico” e um casal que cria porcos enquanto assiste à TV em uma casa no meio da lama de um manguezal.

 

 

 

 

Folclore inspira graphic novel 

 

Lendas sobrenaturais de terror sempre fizeram parte do cotidiano recifense e já foram registradas pela literatura em clássicos como Assombrações do Recife Velho (1955), de Gilberto Freyre, que ganhará uma versão em quadrinhos com adaptação assinada por André Balaio e desenhos de Téo Pinheiro. O lançamento está previsto para o segundo semestre de 2016.
Balaio e Pinheiro também são os autores da novela gráfica de terror A rasteira da Perna Cabeluda, publicada pela editora Bagaço em 2015. Com uma linguagem policialesca, eles resgatam a lendária criatura urbana que passou a assustar os recifenses a partir da década de 1970.
“Resgatamos uma lenda urbana totalmente pernambucana, que não aparece em nenhum outro folclore. Curiosamente, apesar de toda a celeuma daquela época, não conhecemos obras de ficção com esse personagem. Eu era criança, mas lembro de entrevistas com pessoas dizendo que viram a perna atacando um velhinho. Naquele tempo, havia mais espaço para esse tipo de notícia”, comenta André Balaio.
A dupla também produziu Assovios na mata, HQ de terror com 17 páginas, lançada apenas na internet (disponível no site O Recife assombrado), que retrata os ataques da Comadre Florzinha (personagem mítica do folclore brasileiro) contra os funcionários de uma construtora no terreno de uma antiga usina de cana-de-açúcar.
Em 2014, Balaio já havia lançado a coletânea Histórias em quadrinhos d’O Recife Assombrado, com oito contos (desenhados por diferentes artistas e com roteiros também de Leonardo Santanna). O livro encontra-se esgotado nas livrarias, mas é possível ler tudo no site do projeto.