Elke, a maravilhosa
Perfil extravagante e libertário da artista, morta ontem aos 71 anos, transgrediu modismos, desconstruiu preconceitos e antecipou debates de gênero dentro e fora dos palcos
Larissa Lins
larissalins.pe@dabr.com.br
Publicação: 17/08/2016 08:00
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Personagem caricata, versão extravagante de si mesma, Elke Maravilha não se dizia mulher, nem homem. Ia além dos limites de gênero para assumir possibilidades mais vastas na condição de criatura viva, transgressora, livre, uma “pessoa”, simplesmente. Nascida Elke Georgievna Grunnupp, em Leningrado, na Rússia, tomou os palcos brasileiros como modelo, atriz, apresentadora, cantora. Na última turnê pelo Recife, em janeiro deste ano, mesclou a própria história a canções interpretadas em quatro idiomas. Era única porque estrambólica, colorida, poliglota, vanguardista. Na madrugada de ontem, “foi brincar de outra coisa”. Faleceu no Rio de Janeiro, onde estava internada desde o dia 20 de junho, na Casa de Saúde Pinheiro Machado, em Laranjeiras, Zona Sul da capital carioca. Diabética, Elke era mantida em coma induzido desde que operara uma úlcera, mas já não reagia às medicações. “Avisamos que nossa Elke ja não está por aqui, conosco. Que todos os deuses, que ela tanto amava, estejam com ela nessa viagem”, foi publicado em sua página no Facebook, anunciano a partida.
A morte de Elke Maravilha despertou comoção em diferentes segmentos da classe artística. Colegas e admiradores compartilharam homenagens nas redes sociais e lamentaram a despedida. Karina Buhr, de cujo disco Selvática Elke participou, foi uma das primeiras a publicar depoimento emocionado: “Ela sabia de tudo. Dizia que não, mas sabia. A minha amiga.Falava todas as línguas e mais algumas”.
Daniela Mercury acrescentou: “Elke, sua arte e sua alegria nos inspiraram e continuarão por toda eternidade. A arte é eterna. Saudade!”. Maria Bethânia foi sucinta: “Luz. Liberdade. Amor. Cor. Cores. Não sei mais o que dizer.” A atriz Rita Cadillac também se pronunciou: “Muito triste. Elke vai alegrar agora o céu junto, como ela dizia, com o 'painho' (Chacrinha). Saudades, amada!”
ESTILO
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Autenticidade estava entre maiores marcas da atriz |
Elke não se intimidava pelos tapetes vermelhos - nos anos 1970 e 1980, cruzou as passarelas vestida pelos principais estilistas brasileiros da época, como Clodovil e Zuzu Angel -, mas subvertia os padrões.
Em Pernambuco, inspirou coleção do estilista e designer Beto Kelner (Gatos de rua), lançada em 2011. Acessórios e itens decorativos estampavam alces - referência ao nome da artista, que em russo significa alce - e revelavam passagens de sua trajetória pessoal: a migração da família russa para o Brasil, a carreira sob os holofotes, a identidade livre de gêneros. “Elke sempre transbordou autenticidade. Ela foi pioneira numa corrente de pensamento que via a moda como ferramenta de empoderamento, expressão pessoal. Os kaftans, os shorts e as botas compridas, além dos adereços para cabelo, são suas maiores marcas. O mais impressionante é como o excesso de acessórios se tornava harmônico nela. A personalidade forte sustentava essa ousadia”, lembra Kelner, cuja casa em Porto de Galinhas, Litoral Sul do estado, abrigou muitas vezes a hóspede extravagante. “Era muito engraçado acordar com Elke desmontada. Mas ela é aquilo tudo mesmo, aquele sorriso, aquela boca carnuda, aquele tamanho todo de mulher”, lembra a produtora cultural Maria do Céu, outra amiga íntima da artista na capital pernambucana, responsável por articular sua participação em eventos no Clube Metrópole e no Baile dos Artistas. “Ela dava palco, alegria e apoio à comunidade LGBT. Deu visibilidade às questões de gênero quando nem se falava sobre isso. Ela era mais do que uma mulher ou um homem, era uma entidade política”, avalia Maria.
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Elke Maravilha em show no Recife. Sepultamento será às 9h de hoje, no Rio de Janeiro. Em tom despojado, Elke encontrou Ariano Suassuna (D) |
Última visita
A última passagem de Elke Maravilha pelo Recife foi em janeiro passado, na programação musical do Janeiro de Grandes Espetáculos. Acompanhada do músico pernambucano Adriano Salhab, cantou e contou passagens da própria vida, intercalando memórias a músicas entoadas em quatro idiomas diferentes. A montagem intimista Elke canta e conta teve direção de Rubens Curi e cenografia inspirada na casa da própria artista.
Apátrida
De Zuzu Angel, Elke virou amiga. Foi presa no Aeroporto Santos Dumont, no Rio, em 1971, rasgando aos gritos cartazes com a foto de Stuart Angel Jones, filho da estilista, preso político da ditadura militar no Brasil. Enquadrada na Lei de Segurança Nacional, ela foi detida por seis dias e tornou-se apátrida. Mais tarde, requisitou e obteve cidadania alemã. Jamais voltou a requerer passaporte brasileiro, embora continuasse a viver no país.
Maravilha
É atribuído ao jornalista Daniel Más o apelido Elke Maravilha. O codinome teria sido anunciado por Chacrinha, com quem Elke Grunnupp iniciou a carreira na televisão. Novelas, filmes e peças viriam na esteira da Discoteca do Chacrinha, com quem ela trabalhou durante 14 anos.
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