Tudo outra vez Prestes a completar 70 anos, Belchior é homenageado com livro sobre as possibilidades da música do cantor e compositor

Alexandre de Paula
Especial para o Diario
viver.pe@dabr.com.br

Publicação: 05/10/2016 03:00

 (Samuca/DP)
“Se me der vontade de ir embora, vida adentro, mundo a fora, meu amor, não vá chorar”, cantava Belchior em Princesa do meu lugar, uma das muitas letras em que o compositor cearense profetizava a retirada de cena e o afastamento da vida pública e da carreira musical. Amantes da obra criada por ele preferiram deixar o choro de lado, como pedia o compositor, e usaram a palavra para homenagear e dar, de algum modo, continuidade ao legado do cantor, que completa 70 anos em 26 de outubro. O livro Para Belchior com amor, com textos que dialogam com as canções do músico, é uma dessas homenagens ao rapaz latino-americano do Ceará.

Organizado por Ricardo Kelmer, o livro tem a participação de escritores como Xico Sá, Gero Camilo e Raymundo Netto. A obra surgiu do desejo de Kelmer de escrever contos inspirados nas canções de Belchior. “Pensei em escrever um livreto de bolso com contos inspirados nas canções, mas vi que não teria fôlego. Finalmente, pensei: por que não unir vários autores conterrâneos do rapaz latino-americano, juntar forças e talentos para celebrar a sua arte? Deu certo”, conta.

A ideia inicial de Kelmer surgiu em junho deste ano e o livro levou pouco tempo para ser produzido. “Tivemos três meses para preparar tudo, é incrível que tenhamos conseguido. Acho que só o fizemos de fato porque captamos o zeitgeist, isso que os alemães explicam como sendo o espírito de uma época”, acredita. “Belchior é o espírito deste agora. Sua obra e sua própria vida nos dizem muito neste momento, mais ainda do que diziam nos anos 1970”, completa.

Para o escritor, os textos presentes no livro revelam um Belchior atualíssimo e conectado com as questões contemporâneas e dialogando com temáticas desta época. “Eles estão revelando-o por diversos ângulos, exercitando possibilidades ficcionais, misturando a vida de Belchior com as próprias vidas, trazendo novos e curiosos significados para a sua arte.”

“Belchior é um literato, antes de ser músico. Ele mesmo afirma isso. Ele estudou literatura, poesia e filosofia, e suas letras revelam claramente isso”, argumenta Kelmer. Por esse motivo, ele acredita que explorar as canções do cearense seja uma forma de continuar as letras e amplificar os temas. “Os lançamentos do livro acontecerão em contextos interartísticos, com shows musicais e peças de teatro, pois também há forte potencial teatral.”

Para Kelmer, as letras de Belchior sozinhas já são poesia. “Faça um teste: leia as letras sem pensar na melodia e você se dará conta de que aquilo é poesia, e de boa qualidade”. Professora da USP pós-doutora em letras e música pela Paris X e autora de dissertação de mestrado sobre Belchior, Josely Teixeira concorda que o compositor tem forte diálogo com a literatura.

“Belchior é o compositor brasileiro que mais dialoga (no interior de suas canções) com a tradição literária do Brasil e do mundo”. Ela aponta a veia contestadora do músico como um das suas peculiaridades. “Ele veio para dialogar com a tradição musical da canção”, explica. A professora é autora de um projeto que homenageia os 70 anos do compositor. “Como sou radialista, resolvi mostrar ao público por meio de um programa de rádio a análise dos discos autorais de Belchior de forma aprofundada.” Os programas estão disponíveis em: goo.gl/ctlkuf.

Serviço

Para Belchior com amor
Organização de Ricardo Kelmer.
Miragem editorial, 96 páginas.
R$ 10. Vendido pela internet.
Informações: facebook.com/BelchiorSeteZero

Por onde anda?
Desde 2009, o compositor não faz shows e quase não há notícias sobre o que o “cantador de coisas do porão” tem feito. O último disco inédito foi lançado em 1993. Com pendências e dívidas, ele passou pelo Uruguai e estaria, segundo as últimas informações, no interior do Rio Grande do Sul se dedicando ainda a uma versão com linguagem popular da Divina comédia, de Dante Alighieri.  

Entrevista Josely Teixeira \\ pesquisadora

A obra de Belchior permite esse diálogo com outras áreas?

Em minha pesquisa de mestrado, o objetivo foi justamente analisar como Belchior dialoga com as áreas da literatura, da música, mas também da filosofia, da ciência, da psicanálise, dentre outras. Ele é um dos autores brasileiros que mais dialogam com uma série de universos.

O que faz com que ele seja tão atual?
Belchior fala da luta diária para sobreviver nos centros urbanos, das migrações entre sertão e cidade, das relações de desigualdade entre povo e poderosos, dos sofrimentos dos excluídos, da força dos brasileiros e latinos diante de tudo isso. Enquanto houver isso no Brasil e no mundo, Belchior será atual.

Existem facetas de Belchior ainda pouco conhecidas? Há o que se conhecer dele?
Sim, existem muitos belchiores sobre os quais a imprensa e a crítica não comentam e talvez não conheçam. E são exatamente esses belchiores que venho procurando mostrar com minhas pesquisas. Somando mestrado e doutorado, escrevi quase mil páginas sobre a obra de Belchior, sem contar os artigos em revistas e livros. E te confesso que na obra dele ainda tem muita coisa a ser investigada. Como defendo, Belchior é “muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior”, que é o título do meu mestrado.