Até mais ver, como diria o cronista Belchior Obra dele dialogou com várias vertentes artísticas e o equiparou a poetas atemporais e internacionais

Tiago Barbosa
tiago.barbosa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 01/05/2017 03:00

O primeiro contato da radialista e pesquisadora cearense Josely Teixeira Carlos com a obra do conterrâneo Belchior respirou fascínio e estranhamento: quando criança, gostava de ouvir as músicas do cantor, mas custava a entender as letras. As dúvidas aguçaram o interesse pelas composições, e a incompreensão se converteu em pesquisa. Na faculdade, percebeu a necessidade de estabelecer pontes com outros campos artísticos para compreender as canções. Era o prenúncio da descoberta de um artista capaz de se imortalizar através de obras atemporais e universais, de expressar o particular e o geral, o local e o internacional, com capilaridade criativa para além do campo da música.

Em 2016, desenvolveu um projeto para celebrar os 70 anos dele. Em paralelo, havia desenvolvido amizade com o ídolo, definido como guru. “A obra dele é fonte inesgotável de conteúdo filosófico e humanista, de temas para vida. Era uma pessoa maravilhosa, cavalheiro à flor da pele, educado, gentil”, diz a doutora pela USP, estudiosa das música de Belchior desde 1999. Ao Viver, disse considerá-lo “o compostor brasileiro que mais dialoga com a literatura brasileira e mundial”.

Entrevista

Josely Teixeira  //  radialista e pesquisadora da USP

Por que o interesse na obra de Belchior?
Sou cearense e ouço desde muito pequena. Ouvia junto às músicas de Fagner, Ednardo. Mas o que me chamava a atenção era que não entendia as canções de Belchior . Na faculdade de letras, percebi que precisava de outras referências literárias e musicais para chegar ao sentido das canções dele. A obra dialoga com a de Bob Dylan, Beatles, Rolling Stones.

Qual a importância dele para a música e o país?
Ele trabalha com muitos diálogos com outros textos literários e musicais, uma infinidade de autores da literatura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade e José de Alencar. A importância também está na profundidade intelectual. Não tenho dúvida de que é o compostor brasileiro que mais conversa com a literatura brasileira e mundial, e isso é expressado na obra, ora diretamente, ora de forma sutil. Ele quer que o leitor entre na obra para que consiga se aproximar da conversa que quis estabelecer.

Em essência, sobre o que falava a obra do cantor?

Vai muito além de um “rapaz latino-americano vindo do interior”, como diz a música. Está associado a esse personagem que sai da cidade pequena e migra para uma grande metrópole, passa por todo tipo de sofrimento, dificuldade, e quer vencer. E não quer voltar ao Sertão (como diz na canção Como os nossos pais: vou ficar na sua cidade não vou voltar para o Sertão). Representa milhões de brasileiros que deixam a cidade natal em busca de uma cidade melhor. É um personagem que sofre, mas resiste. A imagem, esse significado do homem interiorano que parte é muito forte. Mas a obra está além dessa mensagem. Dialoga com vários universos da cultura, com questões políticas, filosóficas, científicas. Esse homem tem origem no Sertão, mas conversa com um universo maior que o brasileiro, latino-americano, mundial. É a proposta de que o Brasil não está sozinho, dialoga com outros países, está inserido dentro de um sistema maior.

O caráter atemporal das letras é um dos méritos dele?

Uma das características mais importantes é a atualidade. É a contemporaneidade. Parece que ele escreveu essas canções ontem, durante a greve geral do Brasil. São canções que falam de temas atuais. Isso se deve ao fato de ele ter escolhido conteúdos que sempre vão existir, a relação entre o regional e o nacional, entre o nacional e o internacional, entre os filhos e os pais, entre gerações presentes e antigas. Fala das dificuldades cotidianas, das pessoas que estão à margem dos grandes centros, do papel das instituições. São pessoas que estão aí, no dia a dia, enfrentando dificuldades e sendo reféns das grandes decisões políticas e instituicionais. Se ele fosse francês, as canções se adequariam às lutas de classe da Europa.

Quais músicas dele são fundamentais para entendê-lo?
Poderiam ser três. Apenas um rapaz latino-americano, um dos grandes personagens que ele instituiu para o sentido que quis passar no cancioneiro. Fotografia 3x4 fala sobre a migração, do norte para a cidade grande. E Até mais ver, que marca não os conteúdos, mas fecha o cancioneiro dele. É a última canção gravada por Belchior, no último disco dele autoral (Bahiuno, de 1993). É a canção de despedida. Não por acaso aparece como a última faixa do disco. Não teve quase nenhuma repercussão, mas fecha a obra porque se despede e diz que a distância com o público é passageira. A gente identifica ali que ele não volta mais. Ali, ele encerra a sua ópera.