Cheio de esperança e fé, já se mandou Morte do cantor e compositor cearense Belchior, vítima de rompimento na aorta, deixa lacuna na música brasileira e é lamentada por artistas, fãs e familiares

Tiago Barbosa
tiago.barbosa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 01/05/2017 03:00

 (FOTOS: CORREIO BRASILIENSE/DIVULGAÇÃO)

Belchior voltou. Para ir de vez. Do autoexílio sob o qual se escondeu em anos recentes, emergiu a fatídica notícia da morte do cantor, súbita como a decisão de desaparecer dos olhos e ouvidos do público em favor de uma vida pacata e anônima no Sul do país. O silenciamento noturno sobre o sofá da residência onde vivia - e costumava ouvir música - fez sumir em definitivo o compositor cujas canções iluminaram tantos encontros entre o Brasil de dentro e as metrópoles, o migrante e o sonho, o particular e o universal, o tempo e o infinito. Por letras entrecortadas de referências a inúmeras linguagens artísticas, escorria o sentido de um ser humano sempre em busca, de partida, em contraposição a um mundo por vezes fascinante, por vezes indigesto.

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, de 70 anos, vivia há cerca de três anos na cidade de Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, e era, aparentemente, desconhecido dos vizinhos. Na noite do sábado, disse a polícia, com base no depoimento da esposa, Edna, deitou-se no sofá por volta das 23h. Sentia frio e dores nas costas. Não acordou mais. A causa da morte foi um rompimento da aorta. A família comunicou o óbito ao governo do Ceará, terra natal do cantor, e o executivo estadual decidiu providenciar o traslado do corpo até Sobral, onde ele será velado. A previsão é de chegada é a manhã de hoje. O governador Camilo Santana decretou luto oficial de três dias.

O retorno às entranhas nordestinas encerra o ciclo de quem fez da música o passaporte para ganhar a estrada da vida. Belchior nasceu em 1946, cursou filosofia e humanidades, arriscou o curso de medicina, mas trocou a possibilidade do jaleco pelas canções. A veia artística, hedou do pai flautista, do canto na feira e dos repentes, dos tios boêmios. Tocou e venceu festivais. Na década de 1970, uniu-se aos conterrâneos Fagner, Ednardo, Cirino e catapultou o nome do Ceará. Em seguida, viu a música Mucuripe (parceria com Fagner) brilhar com Elis Regina. Era o impulso na carreira. Viriam sucessos enfileirados, como Velha roupa colorida, Como nossos pais, Apenas um rapaz latino-americano e Sujeito da sorte no icônico álbum Alucinação (de 1976). As canções flertaram com questões existenciais, de cunho político e, no mesmo compasso, familiar, pessoal. Serviriam para indagar a aspiração do indivíduo, a posição no mundo, o encontro e a fuga. O sujeito múltiplo.

Belchior foi interpretado. Roberto Carlos gravou dele Mucuripe em 1975. Engenheiros do Hawaii gravou Alucinação, a cantora Wanderléa, Paralelas e Jair Rodrigues, Galos, noites e quintais. Belchior revelou. Com o disco Paraíso (1982), cedeu estrelato a cantores como Jorge Mautner, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes. Belchior encantou. No ano de lançamento de Todos os sentidos (1978), fez show com Simone visto por mais de 100 mil pessoas. Belchior se atreveu. Em 1983, criou a própria gravadora, a Paraíso Discos, e, em 1997, virou sócio da Cameratti. Belchior foi cantado. Em 1999, a BMG lançou Autorretrato, disco no qual 25 sucessos da carreira ganharam releituras de Rogério Duprat, André Abujamra. E Belchior interpretou. Em Vício elegante, deu voz a músicas de outros compositores. Cantou Romaria, de Renato Teixeira.

Em meados da década passada, saiu de cena pela primeira vez. Diminuiu o número de shows. Sumiu. Para trás, ficaram a carreira, a mulher Ângela Henman, dois filhos, carros e dívidas. Passou a se disfarçar e diz-se ter perdido até o velório da mãe, Dolores. Em 2009, campanha para encontrá-lo, após reportagem no Fantástico reverberar o desaparecimento, resultou em uma justificativa pelo cantor: tinha se isolado no Uruguai para traduzir Divina comédia, de Dante Alighieri. Em seguida, paradeiro desconhecido.

A notícia da morte ensejou tributos em São Paulo e Fortaleza. As lembranças e a vivacidade do legado do cantor contrariam o desejo do ostracismo. Sem paradoxo. Belchior se foi. E ficou.

Belchior resgatado

Diante da escassez de material inédito nos últimos anos, três projetos recentes comandados por admiradores de Belchior resgataram a música do cantor e compositor. Em 2014, o selo Scream & Yell organizou o álbum-tributo Ainda somos os mesmos, com releitura de clássicos por artistas como Manoel Magalhães, Lemoskine e o pernambucano Bruno Souto. Por ocasião dos 70 anos de nascimento do artista, outros dois produtos foram lançados: um livro e um disco. Organizado por Ricardo Kelmer, Para Belchior com amor é uma coletânea de contos, crônicas e outros textos inspirados em canções de sua autoria. Participam autores como Xico Sá, Gero Camilo e Raymundo Netto. Na mesma época, saiu o box Três tons de Belchior, com relançamento de três álbuns do artista: Alucinação (1976), Melodrama (1987) e Elogio da loucura (1988). “A obra dele reflete muito o Brasil e, por muito tempo, não existia produtos de Belchior à venda, estava tudo for a de catálogo, então foi importante para recolocar no mercado e incluir também nos serviços de streaming”, comenta o pesquisador e jornalista Renato Vieira, responsável pelo projeto. 

Depoimentos

“A nossa amizade passou desde o colégio até o desaparecimento dele, quando ele desertou da cidade. Ele ia em casa e a gente ria muito. Com ele, as minhas conversas eram para rir muito. Era um cara brilhante”
Fausto Nilo, parceiro de Belchior

“Meu parceiro mais importante da música, o mais significativo. Lamento produndamente não termos tido uma relação de amizade, em que poderíamos ter produzido mais. Mas o que tivemos marcou a minha vida e a dele”
Fagner, parceiro de Belchior

“Um pedaço da mocidade da gente vai embora. Belchior foi e sempre será o melhor letrista de canções transformadoras”
Guilherme Arantes, compositor

“Tristeza. Ele foi o primeiro intérprete a gravar uma música minha, Estranheza, em 1982”
Arnaldo Antunes, cantor

“São tantos os versos que tocam a alma profundamente, desde sempre, desde que entendo a música como ferramenta de explosão - de amores, de desamores, luta,  resistência”
Marita Rita, cantora e filha de Elis

“Fico muito triste. O Bel sempre foi uma pessoa culta, com um espírito lindo. Acho que ainda tinha muito a dizer e sabia dizer de modo lindo nas canções”
Robertinho de Recife, guitarrista, produtor de Pessoal do Ceará (2002), no qual Belchior gravou a inédita Bossa em palavrões, com participação de Ednardo e Amelinha

“Belchior era um filósofo, possuía uma erudição impressionante. A última vez que nos vimos foi num 14 de julho em Paris. Brindamos juntos à queda da Bastilha. Foi um dos grandes poetas da música brasileira”
Alceu Valença, músico

“O que sempre me chamou a atenção nas músicas é a força e a verdade das palavras, de como aqueles textos são contundentes e atemporais. Toda vez que ouço algo dele, tenho a imagem de alguém gritando e contando verdades em praça pública”
China, cantor

“Belchior me influenciou muito. A obra dele tinha uma identidade regional. Era uma música que a gente entendia a simbologia”
Fábio Trummer, músico

“Me arrependo muito de não tê-lo entre os nomes clássicos da MPB, malditos ou não, que passaram pelo Abril Pro Rock”
Paulo André, produtor do evento