Caravanas da poesia Após hiato de seis anos, Chico Buarque lança disco de inéditas marcado pela diversidade: músicas confrontam preconceitos, intolerâncias e relacionamentos

Ângela Faria
edviver@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 23/08/2017 03:00

Contundente e lírico. Assim é Caravanas, disco que Chico Buarque vai mandar para as lojas e plataformas digitais na sexta-feira. São nove faixas - sete inéditas, além de A moça do sonho (parceria com Edu Lobo para o musical Cambaio) e Dueto, cantada por ele e a neta Clara, assim como ocorreu no documentário sobre o compositor dirigido por Miguel Faria Jr., de 2015.

Última faixa, As caravanas arrepia. Fala tanto do Brasil racista e acomodado à histórica violência social, que apoia a exclusão dos pretos de suas praias chiques, quanto dos refugiados que buscam um porto pelo mundo afora. “Não há barreira que retenha/ Esses estranhos/ Jovens tipo muçulmanos (...) / Com negros torsos nus deixam/ Em polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela (...)”, canta ele. Certeiro, dispara: “Tem que bater, tem que matar/ Engrossa a gritaria/ Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. Chico convidou Rafael Mike, integrante do grupo Dream Team do Passinho, símbolo do funk carioca, para participar da faixa.

Não temos aqui panfleto. Pura poesia, a canção-petardo remete a Caravan, de Duke Ellington. Spoiler: Chico não caiu no batidão. Mescla suavemente o beatbox de Mike à sua inspirada crônica social, uma bela “pedrada”, como diz a rapaziada do rap e do funk. “Diz que malocam seus facões e adagas/ Em sungas estufadas e calções disformes/ Diz que eles têm picas enormes/ E seus sacos são granadas/ Lá das quebradas da Maré”, rima ele. “Sol, a culpa deve ser do Sol/ Que bate na moleira, o Sol/ Que estoura as veias, o suor/ Que embaça os olhos e a razão”, ironiza.

Falar em moçada, lá está Chico Brown, 21, neto do compositor e de Marieta Severo, parceiro em Massarandupió. Ouvido absoluto, multi-instrumentista e metaleiro, ele compôs a valsa que o avô letrou, inspirada na praia baiana frequentada quando menino - “aquele piá/ aquele neguim/ aquele bacuri”.

Clara, irmã de Chiquinho e filha de Carlinhos Brown e Helena Buarque, traz ainda mais delicadeza à romântica Dueto, lançada por Nara Leão. Ao final, neta e avô brincam com os facebooks, tinders, orkuts e whatsapps da vida - as versões digitais do velho correio eletrônico.

Tribunais digitais, aliás, elegeram Chico o réu do ano quando ele liberou o clipe da inédita Tua cantiga. O autor de Futuros amantes foi acusado de machista por escrever o verso “quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir”. Em sua recém-criada conta no Instagram, o compositor reagiu: “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante”. Polêmicas à parte, ele pôs até Shakespeare no meio da “confusão”: veio do bardo inglês a referência para o verso “ou estas rimas/ Não escrevi/ Nem ninguém nunca amou”.

Há anos, Chico mandou para as redes o vídeo em que, divertido, revela surpresa por ser espinafrado na web. Gargalha ao repetir os posts odientos. Sua Desaforos fala, aparentemente, de um amor mal-resolvido. Ledo engano. Aqueles versos caem sob medida para haters e afins. “Custo a crer/ que meros leros-leros de um cantor/ possam te dar/ tal dissabor”, canta, “apenas um mulato que toca boleros”. E lamenta que os lábios delicados da amada “roguem pragas por aí”.

Gente antichico e antiesquerda, certamente, vai desprezar Casualmente, parceria com o baixista Jorge Helder, com versos em espanhol. É uma declaração de amor a Havana, capital de Cuba. “Regresaré, ojala/ Algun día a la ciudad/ Y perdidamente en sus calles voy a buscar/ Por la penumbra/ El momento fugaz/ Que no puedo olvidar”. Definitivamente, o bolerão corre risco de transformar o xingamento “vai pra Cuba!” em objeto do desejo....