Os feitos praticados no Brasil
Quase 400 anos depois da primeira edição, Cepe Editora relança domingo o histórico livro História dos feitos recentemente praticados no Brasil, do historiador holandês Gaspar Barléu
Anamaria Nascimento
anamaria.nascimento@diariodepernambuco.com.br
Publicação: 24/11/2018 03:00
“Não existe pecado ao Sul do Equador.” A frase, repetida na canção de Chico Buarque e Rui Guerra e popularizada pela interpretação de Ney Matogrosso, foi, por décadas, considerada uma máxima sobre os vícios e virtudes acima e abaixo da linha que divide o mundo em dois hemisférios. Poucos sabem, porém, que ela é de autoria do historiador holandês Gaspar Barléus, autor de História dos feitos recentemente praticados no Brasil, onde relata os feitos do conde Maurício de Nassau na Nova Holanda nordestina. Quase 400 anos depois da primeira edição, o livro, considerado um dos mais importantes para entender o Brasil do século 17, ganhou nova edição com selo da Cepe Editora. A versão inédita, com 503 páginas e intitulada Barléu - História do Brasil sob o governo de Maurício de Nassau, será lançada neste domingo, às 16h, no Instituto Ricardo Brennand, na Várzea.
Até então, o mercado editorial brasileiro só conhecia a primeira tradução integral para o português, de autoria de Cláudio Brandão (1894-1965), que interpretou o texto em 1940 em edição encomendada pelo Ministério da Educação pela passagem do tricentenário da ocupação holandesa no Brasil. Na edição pernambucana, o leitor encontra a tradução do original em latim para o inglês, feita pela pesquisadora holandesa radicada nos Estados Unidos Blanche T. van Berckel-Ebeling Koning (1928-2011). Por ser fruto de uma tradução mais recente e estar acompanhado de 44 páginas de notas explicativas, o texto histórico ganhou maior clareza. O livro foi um pedido do próprio Nassau quando regressou à Europa, em 1644, preocupado em destacar seus feitos durante os oito anos em que esteve à frente do governo holandês no Brasil. Ele escolheu o poeta, acadêmico, filósofo e um dos mais renomados humanistas das Províncias Unidas dos Países Baixos Caspar van Baerle (1584-1648), o Barléu (ou Barléus), para escrever a obra. Apesar de nunca ter visitado o Brasil, Barléu fez as anotações e compôs a obra em caráter laudatório em dois anos, a partir de acervo reunido do período, como relatos oficiais em holandês, cartas, entre outros documentos.
Ilustrações e mapas de Frans Post e Georg Marcgraf, que acompanharam Maurício de Nassau, foram incluídos na publicação. “Nassau foi o primeiro nobre europeu a governar uma região das três Américas. Ele viajou com a primeira missão artístico científica a cruzar o Equador. Patrocinou a primeira edição sobre história natural do Brasil e também esta obra (Barléu), que é da maior importância, ainda hoje, para os estudos da história brasileira”, destaca o historiador Leonardo Dantas, um dos diretores do Instituto Ricardo Brennand, onde estão guardadas todas as edições da obra (a original aquarelada de 1647, a primeira edição brasileira de 1940, a tradução para o alemão e versões encomendadas pela Prefeitura do Recife em 1979 e editadas pelo próprio Leonardo Dantas).
A obra reúne informações valiosas sobre o Brasil Colônia, como hábitos dos núcleos urbanos; relatos de batalhas; descrição da fauna e flora e, inclusive, o posicionamento de Nassau sobre alguns temas, como a escravidão. No prefácio, Blanche pondera que o texto de Barléu não menciona a opinião do governador sobre o assunto: “Assim como o padre Vieira, ele não poderia advogar pela abolição da escravatura, mas condenava o modo que os escravos eram tratados a bordo de navios durante a infame passagem da Costa da África para a América do Sul.”
Ao comparar a versão clássica de Cláudio Brandão com a tradução da holandesa, o editor da Cepe, Wellington de Melo, destaca a aproximação do texto com o leitor contemporâneo, que gosta de história, mas não é necessariamente um historiador. “A partir da profusão das mais de 300 notas produzidas, a tradutora esclarece trechos que ficaram obscuros. A organização também é diferente, facilitando a leitura”, pontuou.
“Os escritores gregos e romanos encheram suas páginas com os assuntos de Atenas, Esparta, Cartago, Roma, Lácio, Gália e Germânia. Porém, serão Olinda, Pernambuco, Maurícia, Itamaracá, Paraíba, Luanda, São Jorge da Mina e Maranhão os nomes da nossa história, todos desconhecidos pelos antigos. Seus adversários foram os assírios, persas, gregos, macedônios, italianos, cartagineses, alóbrogos e queruscos; os nossos são os tapuias, mariquitos, potiguares, caraíbas, chilenos e peruanos”, escreveu Barléu na dedicatória “ao ilustríssimo conde João Maurício de Nassau, ex-governador-general do Brasil holandês”.
O presidente da Cepe Editora, Ricardo Leitão, contou que a nova edição do livro demorou mais de dois anos para ser concluída. “Faz parte da missão institucional da empresa não só publicar autores novos, mas editar obras importantes para a compreensão da história de Pernambuco. O trabalho se desenvolveu por solicitação do (ex-governador) Eduardo Campos. Ele visitou a Biblioteca Oliveira Lima (no campus da Universidade Católica da América), em Washington, e voltou com esse pedido, que entregamos agora”, afirmou.
Uma frota repleta de estudiosos
A frota que acompanhou o Zuphen, embarcação que transportou Maurício de Nassau do Velho Continente para o Recife, era bem menor que a esperada pelo conde. Ele desejava 32 caravelas e sete mil homens. Conseguiu 12 navios com 2,7 mil passageiros. A redução, porém, não comprometeu o principal desejo do representante do governo holandês: ser acompanhado por um grupo de estudiosos que registrariam as descobertas no novo território e, claro, os feitos do novo governante.
Com ele, desembarcou um grupo de 46 estudiosos, que incluía seu médico particular, Willem Piso, o astrônomo Georg Marcgraf, além dos pintores Frans Post e Albert Eckhout. Coube a Post e a Eckhout assinar mapas, obras de arte e herbários considerados fundamentais para a compreensão da arte, história e ciência não só de Pernambuco, mas do Brasil.
Humanista, Nassau mandou construir um observatório astronômico e criou um jardim botânico. Entre 1637 e 1644, tempo que governou em terras brasileiras, o conde alemão provocou mudanças e foi responsável por muitos dos pioneirismos que tanto orgulham os pernambucanos: decretou a liberdade de culto religioso, fez a primeira documentação da paisagem local, criou zoológico, construiu a primeira ponte da América Latina e remodelou urbanisticamente o Recife.
Por causa dos feitos, até hoje, muitos pernambucanos mantêm uma paixão platônica pelos holandeses e acreditam que o estado viveria dias melhores se os neerlandeses não tivessem sido expulsos. Ilusão, diz o arquiteto e urbanista José Luiz de Menezes. “Nassau ajudou a criar um grande mito, uma memória de que aquilo seria bom. Mas não estaria. As possessões holandesas hoje não estão bem”, afirmou.
Nassau chegou a comandar uma área de aproximadamente 1,5 mil quilômetros na costa brasileira, que ia do Sergipe ao Maranhão. Ao todo, foram 2.666 dias sob o comando dele, o grande responsável pela afetividade que permaneceu nos pernambucanos em relação aos holandeses, que ainda ficaram mais dez anos depois da saída do conde de Pernambuco. A expulsão só aconteceu em 1654.
Serviço
Lançamento de Barléu - História do Brasil sob o governo de Maurício de Nassau
Quando: domingo
Horário: 16h
Onde: Instituto Ricardo Brennand
Endereço: Rua Mário Campelo, 700, Várzea, Recife
Preço: R$ 90
Até então, o mercado editorial brasileiro só conhecia a primeira tradução integral para o português, de autoria de Cláudio Brandão (1894-1965), que interpretou o texto em 1940 em edição encomendada pelo Ministério da Educação pela passagem do tricentenário da ocupação holandesa no Brasil. Na edição pernambucana, o leitor encontra a tradução do original em latim para o inglês, feita pela pesquisadora holandesa radicada nos Estados Unidos Blanche T. van Berckel-Ebeling Koning (1928-2011). Por ser fruto de uma tradução mais recente e estar acompanhado de 44 páginas de notas explicativas, o texto histórico ganhou maior clareza. O livro foi um pedido do próprio Nassau quando regressou à Europa, em 1644, preocupado em destacar seus feitos durante os oito anos em que esteve à frente do governo holandês no Brasil. Ele escolheu o poeta, acadêmico, filósofo e um dos mais renomados humanistas das Províncias Unidas dos Países Baixos Caspar van Baerle (1584-1648), o Barléu (ou Barléus), para escrever a obra. Apesar de nunca ter visitado o Brasil, Barléu fez as anotações e compôs a obra em caráter laudatório em dois anos, a partir de acervo reunido do período, como relatos oficiais em holandês, cartas, entre outros documentos.
Ilustrações e mapas de Frans Post e Georg Marcgraf, que acompanharam Maurício de Nassau, foram incluídos na publicação. “Nassau foi o primeiro nobre europeu a governar uma região das três Américas. Ele viajou com a primeira missão artístico científica a cruzar o Equador. Patrocinou a primeira edição sobre história natural do Brasil e também esta obra (Barléu), que é da maior importância, ainda hoje, para os estudos da história brasileira”, destaca o historiador Leonardo Dantas, um dos diretores do Instituto Ricardo Brennand, onde estão guardadas todas as edições da obra (a original aquarelada de 1647, a primeira edição brasileira de 1940, a tradução para o alemão e versões encomendadas pela Prefeitura do Recife em 1979 e editadas pelo próprio Leonardo Dantas).
A obra reúne informações valiosas sobre o Brasil Colônia, como hábitos dos núcleos urbanos; relatos de batalhas; descrição da fauna e flora e, inclusive, o posicionamento de Nassau sobre alguns temas, como a escravidão. No prefácio, Blanche pondera que o texto de Barléu não menciona a opinião do governador sobre o assunto: “Assim como o padre Vieira, ele não poderia advogar pela abolição da escravatura, mas condenava o modo que os escravos eram tratados a bordo de navios durante a infame passagem da Costa da África para a América do Sul.”
Ao comparar a versão clássica de Cláudio Brandão com a tradução da holandesa, o editor da Cepe, Wellington de Melo, destaca a aproximação do texto com o leitor contemporâneo, que gosta de história, mas não é necessariamente um historiador. “A partir da profusão das mais de 300 notas produzidas, a tradutora esclarece trechos que ficaram obscuros. A organização também é diferente, facilitando a leitura”, pontuou.
“Os escritores gregos e romanos encheram suas páginas com os assuntos de Atenas, Esparta, Cartago, Roma, Lácio, Gália e Germânia. Porém, serão Olinda, Pernambuco, Maurícia, Itamaracá, Paraíba, Luanda, São Jorge da Mina e Maranhão os nomes da nossa história, todos desconhecidos pelos antigos. Seus adversários foram os assírios, persas, gregos, macedônios, italianos, cartagineses, alóbrogos e queruscos; os nossos são os tapuias, mariquitos, potiguares, caraíbas, chilenos e peruanos”, escreveu Barléu na dedicatória “ao ilustríssimo conde João Maurício de Nassau, ex-governador-general do Brasil holandês”.
O presidente da Cepe Editora, Ricardo Leitão, contou que a nova edição do livro demorou mais de dois anos para ser concluída. “Faz parte da missão institucional da empresa não só publicar autores novos, mas editar obras importantes para a compreensão da história de Pernambuco. O trabalho se desenvolveu por solicitação do (ex-governador) Eduardo Campos. Ele visitou a Biblioteca Oliveira Lima (no campus da Universidade Católica da América), em Washington, e voltou com esse pedido, que entregamos agora”, afirmou.
Uma frota repleta de estudiosos
A frota que acompanhou o Zuphen, embarcação que transportou Maurício de Nassau do Velho Continente para o Recife, era bem menor que a esperada pelo conde. Ele desejava 32 caravelas e sete mil homens. Conseguiu 12 navios com 2,7 mil passageiros. A redução, porém, não comprometeu o principal desejo do representante do governo holandês: ser acompanhado por um grupo de estudiosos que registrariam as descobertas no novo território e, claro, os feitos do novo governante.
Com ele, desembarcou um grupo de 46 estudiosos, que incluía seu médico particular, Willem Piso, o astrônomo Georg Marcgraf, além dos pintores Frans Post e Albert Eckhout. Coube a Post e a Eckhout assinar mapas, obras de arte e herbários considerados fundamentais para a compreensão da arte, história e ciência não só de Pernambuco, mas do Brasil.
Humanista, Nassau mandou construir um observatório astronômico e criou um jardim botânico. Entre 1637 e 1644, tempo que governou em terras brasileiras, o conde alemão provocou mudanças e foi responsável por muitos dos pioneirismos que tanto orgulham os pernambucanos: decretou a liberdade de culto religioso, fez a primeira documentação da paisagem local, criou zoológico, construiu a primeira ponte da América Latina e remodelou urbanisticamente o Recife.
Por causa dos feitos, até hoje, muitos pernambucanos mantêm uma paixão platônica pelos holandeses e acreditam que o estado viveria dias melhores se os neerlandeses não tivessem sido expulsos. Ilusão, diz o arquiteto e urbanista José Luiz de Menezes. “Nassau ajudou a criar um grande mito, uma memória de que aquilo seria bom. Mas não estaria. As possessões holandesas hoje não estão bem”, afirmou.
Nassau chegou a comandar uma área de aproximadamente 1,5 mil quilômetros na costa brasileira, que ia do Sergipe ao Maranhão. Ao todo, foram 2.666 dias sob o comando dele, o grande responsável pela afetividade que permaneceu nos pernambucanos em relação aos holandeses, que ainda ficaram mais dez anos depois da saída do conde de Pernambuco. A expulsão só aconteceu em 1654.
Serviço
Lançamento de Barléu - História do Brasil sob o governo de Maurício de Nassau
Quando: domingo
Horário: 16h
Onde: Instituto Ricardo Brennand
Endereço: Rua Mário Campelo, 700, Várzea, Recife
Preço: R$ 90
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