O castelo perdeu seu rei Criador de um dos mais importantes museus da América, colecionador, mecenas e empresário de sucesso, Ricardo Brennand morreu aos 92 anos e deixa um vasto legado para as artes em Pernambuco

EMANNUEL BENTO
emannuel.bento@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 27/04/2020 03:00

Em 6 de agosto de 2019, o Instituto Ricardo Brennand, localizado no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife, recebia visitantes de várias nacionalidades durante uma tarde ensolarada. Em um espaço próximo à sala das esculturas de cera, um idoso conversava com funcionários engravatados. Sentado em uma cadeira de rodas motorizada, ele tentava ouvir os homens com a ajuda de um aparelho auditivo. Ricardo Brennand, tradicional empresário, colecionador e fundador do museu, foi com curiosidade observado pelos excursionistas. Confirmada a identidade, o mecenas percorreu pelos salões do conjunto para posar em fotos, receber abraços e cumprimentos honrosos dos visitantes. Sempre sorridente. Uma senhora, natural de Garanhuns, no Agreste, soltou: “Escolhemos o dia certo para visitar”.

O IRB suspendeu temporariamente a visita ao público em 15 de março, quando as medidas de isolamento social ocasionadas pela pandemia do novo coronavírus começaram a ser decretadas pelas autoridades. O espaço segue de portões fechados e, quando voltar a funcionar, cenas como a da tarde de agosto serão revisitadas apenas nas lembranças daqueles que esbarraram com o proprietário. E o motivo disso também é por essa pandemia, tida por muitos líderes como o maior desafio da civilização contemporânea desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Ricardo Coimbra de Almeida Brennand morreu na madrugada do último sábado, aos 92 anos, por complicações causadas pelo novo coronavírus. Ele tinha problemas pulmonares e estava internado no Real Hospital Português, na região central do Recife, desde o dia 20 de abril. De acordo com fontes ligadas à família, o pernambucano ainda recebeu tratamento em casa, mas precisou ser internado após uma piora. Ainda no sábado, uma missa foi realizada na Paróquia de São Pedro, no Litoral Sul de Pernambuco, com transmissão ao vivo pela internet. O corpo foi cremado no Cemitério Morada da Paz, no município de Paulista. Ele deixa a esposa, Graça Maria, sete filhos, 23 netos, 48 bisnetos e um tataraneto.

Filho de Antônio Luiz de Almeida Brennand e Dulce Padilha Coimbra, Ricardo Brennand nasceu em 27 de maio de 1927, no Cabo de Santo Agostinho, município tido por alguns historiadores como o local de “descobrimento” do Brasil. Assim como outros parentes, cresceu em terras de aspecto feudal.

Passou os primeiros anos na região da Usina Santo Inácio, propriedade de Antônio e Ricardo, os “Irmãos Brennand”. A área tinha uma capela dedicada ao santo espanhol Inácio de Loyola e foi considerada um engenho de açúcar central até 1884.

A família se mudou para o engenho São João, na Várzea, em 1931. Ricardo estudou no Colégio Marista entre 1937 e 1942, sendo aluno também no extinto Colégio Oswaldo Cruz. Além das aulas tradicionais, ele recebeu educação de uma orientadora que o ensinou a falar fluentemente inglês e alemão. A preocupação com as línguas anglófonas são justificadas pela descendência inglesa da família Brennand - a linhagem do Brasil começou com a vinda de Edward Brennand para o litoral nordestino, em 1820.

O pernambucano concluiu os cursos de engenharia civil e engenharia mecânica, ambos na Universidade Federal de Pernambuco, em 1949. No mesmo ano, casou-se com Graça Maria Monteiro. Eles tiveram oito filhos: Ricardo Filho, Catarina Maria, os gêmeos José Jaime e Maria de Lourdes, Renata, Patrícia, Paula e Antônio Luiz - este último faleceu em 1998. Após a formação acadêmica, Ricardo enveredou para a área histórica da família: administração de indústrias ligadas a cimento, aço, vidro, porcelana e açúcar.

Por muitas décadas, ele comandou a gestão ao lado do primo Cornélio. Francisco, outro primo, seguiu o caminho das artes, construindo a célebre oficina de cerâmica na região do antigo engenho São João. Ricardo também era um grande apreciador de artes, desenvolvendo a paixão por colecionar peças históricas. Durante constantes viagens, principalmente na Europa e Ásia, o empresário passou a comprar obras que abrangem um período que vai da Baixa Idade Média ao século 20, com destaque para armas brancas, pinturas medievais e da idade moderna e esculturas de influência neoclássica. Ele buscava essas raridades em coleções particulares, museus ou leilões.

Em 1999, Ricardo e Cornélio venderam as fábricas de cimento da família ao centenário grupo português Cimpor, por 590 milhões de dólares. Com parte desses recursos, começou a projetar o Instituto Ricardo Brennand (IRB), uma sociedade sem fins lucrativos fundada em 2001. O espaço é uma homenagem ao tio homônimo, grande incentivador das artes na família.

Ricardo costumava dizer que ganhou o gosto por colecionar ao ganhar um canivete do pai. No Instituto, abrigou sua numerosa coleção e adquiriu outras preciosidades, como as que formam a exposição permanente Frans Post e o Brasil holandês.

Por questões de afeto, o local escolhido para abrigar o espaço foi a Várzea, nas mesmas terras do antigo engenho São João. Do outro lado do Rio Capibaribe, encontra-se a oficina artística do primo Francisco, falecido em dezembro do ano passado. A construção no terreno de Ricardo, no entanto, destoa bastante do universo cerâmico. O conjunto foi edificado em estilo medieval gótico, com destaque para o Museu Castelo São João, a Pinacoteca e a Capela Nossa Senhora das Graças.

Após a venda das fábricas de cimento, Ricardo e Cornélio divergiram nos rumos dos negócios e passaram a atuar em grupos econômicos distintos. Ricardo concentrou investimentos no ramo da energia, mantendo parques eólicos e centrais hidrelétricas, além de voltar a investir em cimento em 2009. Os primos só voltaram a realizar um investimento conjunto na construção do condomínio Reserva do Paiva, no Cabo, localizado num terreno da família. Na lista dos bilionários brasileiros publicada pela revista Forbes em 2019, Ricardo Brennand apareceu com uma fortuna estimada em R$ 3,1 bilhões. Aos 92 anos, era o segundo mais velho do ranking.

Com a sua partida, fica para a sociedade pernambucana e brasileira uma coleção internacionalmente relevante, que preserva e difunde heranças materiais e imateriais da humanidade. A iniciativa de Ricardo, possibilitada pela pujança econômica e pelo conhecimento, fazem valer a sua premissa favorita: “Quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

Linha do tempo

1927
Em 27 de maio, nasce no Cabo de Santo Agostinho, na Usina Santo Inácio.

1931
Família de Ricardo se muda para o Engenho São João, no bairro da Várzea.

1937-1942
Ricardo Brennand realiza os estudos no Colégio Marista.

1939
Ganha do pai o primeiro canivete, originando sua coleção de armas.

1943
Estuda no Colégio Oswaldo Cruz e conhece Graça Maria Monteiro.

1945
Conclui a formação básica no Colégio Oswaldo Cruz, serve ao Exército e ingressa no curso de engenharia da UFPE.

1949
Em 28 de maio, casa-se com Graça Maria Monteiro.

1949
Forma-se em engenharia na UFPE.

1950
Nasce seu primeiro filho, Ricardo Coimbra de Almeida Brennand Filho.

1952
Começa a trabalhar com o pai na Usina São João, onde adquiriu experiência para as futuras atividades industriais.

1952
Viaja com Graça para a Inglaterra, onde começa a adquirir as primeiras peças de sua coleção de armas.

1998
Morre seu filho, Antônio Luiz de Almeida Brennand Neto, aos 47 anos.

1999
Vende fábricas de cimento e, com parte dos recursos, começa a idealizar o Instituto.

2001
Funda o Instituto Ricardo Brennand, na Várzea. No mesmo bairro cria, com a esposa, a creche Nossa Senhora do Rosário, para o atendimento de crianças carentes de 4 meses a 7 anos.

2002
Abre as portas do Instituto com a exposição Albert Eckhout volta ao Brasil, em evento de gala que contou com a presença do príncipe herdeiro da Dinamarca, Frederik.

2007
IRB recebe Menção Honrosa no Prêmio Darcy Ribeiro, do Instituto Brasileiro de Museus. Ganha, no mesmo ano, a Medalha do Mérito Militar.

2012
Ricardo recebe o diploma Ermírio de Moraes, do Senado Federal. IRB recebe a exposição Dores da Colômbia, do colombiano Fernando Botero, obtendo o maior público da mostra no Brasil.

2014
Inaugura a Capela Nossa Senhora das Graças, que dispõe de 600 metros quadrados, 21 metros de altura, podendo receber até 300 pessoas sentadas.

2017
IRB é eleito o melhor museu da América do Sul pelo site internacional TripAdvisor. Ricardo recebe a Ordem do Mérito Capibaribe da Cidade do Recife - Grã Cruz, a mais alta comenda da capital pernambucana, pelo prefeito Geraldo Julio.

2019
Recebe título de Cidadão Recifense, por iniciativa do vereador André Régis.