Pode conter representações desatualizadas Filmes, dublagens e até parques da Disney entram na mira de protestos antirracistas, com produtos cancelados ou acompanhados de avisos com contextualização

Publicação: 30/06/2020 03:00

Já estamos acostumados com a sinopse para uma descrição sucinta de filmes, séries e livros. Mas ela vem ganhando companhia nos últimos tempos. Cresce o número de produções acompanhadas de alertas sobre o que plataformas de streaming chamam de “cultura desatualizada” - ou seja, um aviso de que aquela obra pode desagradar determinados grupos e gerar reações negativas em cadeia.

Foi o que aconteceu recentemente com E o vento levou, clássico de Victor Fleming, retirado temporariamente da HBO Max sob a justificativa de que o filme romantiza a escravidão negra. Depois de sair do ar, foi anunciado que a obra voltaria acompanhada de um vídeo de contextualização histórica.

Semanas depois, foi a vez de a Sky anunciar que botaria avisos em algumas produções. A Disney+ adota esse mesmo modelo de aviso desde seu lançamento, em novembro de 2019. O alerta acompanha algumas das animações mais famosas da empresa, caso de Dumbo, Aristogatas, A Dama e o Vagabundo e Mogli: O menino lobo. “Esse programa é apresentado conforme foi originalmente criado. Ele pode conter representações culturais desatualizadas”, anuncia a plataforma.

Dumbo recebe críticas por causa de uma cena em que o elefante se encontra com um grupo de corvos liderado por Jim. O nome Jim Crow (em inglês, “crow” significa “corvo”) ficou conhecido nos Estados Unidos do século 19 quando o ator Thomas D. Rice deu início à prática de blackface ao interpretar um personagem de mesmo nome. Além disso, entre o fim do século 19 e início do 20, o sul do país vivenciou leis segregacionistas raciais, conhecidas como Leis de Jim Crow. O corvo da animação, portanto, seria uma alusão a essa época - e, portanto, justificaria o aviso adicionado.

“O que me deixa preocupado é esse excesso de julgamento da obra de arte. Isso se aproxima muito de censura”, diz o diretor Bruno Barreto, de filmes como O que é isso, companheiro? e Última parada 174.

Sua obra tampouco escapou das críticas. Seu filme Crô (2013) tem como protagonista o personagem gay da novela Fina estampa e recebeu uma série de críticas de pessoas LGBTs, que afirmaram que o filme reproduz estereótipos homofóbicos. O diretor se defende e diz que esse argumento é preconceituoso, já que ignora a existência de homossexuais com a mesma personalidade do protagonista, criado por Aguinaldo Silva e inspirado em papéis do comediante Jerry Lewis.

Segundo Barreto, vivemos “uma era pautada pelo exagero do politicamente correto, que cerceia a criatividade artística”. “Para mim, nenhum grande artista está dentro de uma caixa. A arte tem que estar acima disso tudo”, diz.

“Não podemos esquecer que a Ku Klux Klan já foi retratada com heroísmo pelo cinema”, lembra Marcelo D’Salete, autor da HQ Angola Janga, sobre o quilombo de Palmares. “Repensar essa iconografia é repensar a história propondo novas formas de ver, debater e sentir.”

Mas não são somente produções audiovisuais que põem pólvora no debate. Músicas como Ai que saudades da Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, Loira burra, de Gabriel, O Pensador, são frequentemente criticadas pelo movimento feminista. A produtora Furacão 2000 chegou a ser condenada a pagar R$ 500 mil por causa da canção Um tapinha não dói, do MC Naldinho, poque ela incitaria a violência contra a mulher.

“As pessoas têm uma ideia de que a liberdade é a ausência de responsabilidade. Mas, na verdade, liberdade envolve parâmetros de convivência”, diz o filósofo e professor Silvio Almeida, autor do livro Racismo estrutural. Na opinião dele, defender a ausência de contextualizações em obras artísticas gera uma paralisia crítica que prejudica a formação de conhecimento. Ele classifica ainda a recente onda de alertas em filmes nas plataformas de streaming como “algo tardio”.

“Acho que não tem ninguém proibindo nada. O que está sendo discutido é que existe democracia e existem direitos civis”, diz a escritora e historiadora Lilia Schwarcz. Tanto ela quanto Almeida afirmam que a inserção de materiais críticos ao conteúdo da obra original não pode ser vista como censura. “Eu estava (como curadora-adjunta) no Masp quando teve o Queermuseu. Eu brinco que essa foi a primeira vez que tive uma tarja preta no meu currículo. Isso sim é censura”, afirma Schwarcz.

A contextualização de obras é mais comum e consolidada na literatura. Editoras vêm há anos acrescentando notas de rodapé em livros que possam gerar leituras preconceituosas, como algumas obras de Monteiro Lobato, entre elas títulos da série do Sítio do Picapau Amarelo e Negrinha. “Por que privilegiar uma história em que a tia Nastácia é subjugada e tem um autor notoriamente eugenista?”, questiona a escritora Bianca Santana. (Folhapress)
 
Parques

A Disney anunciou que vai retirar o brinquedo Splash Mountain das unidades na Califórnia e Flórida, pois ele é inspirado no filme A canção do sul (1946), acusado de racismo tantas vezes que levou a empresa a cancelar o lançamento em VHS anos depois e que não consta na Disney . O longa é acusado de estereotipar a população negra e açucarar as relações entre brancos e escravos nos EUA. No lugar da Splash Mountain, a companhia decidiu homenagear A princesa e o sapo, animação do estúdio que foi lançada em 2009 e que traz a primeira princesa negra.