A americanização do Recife No livro Yes, nós temos Coca-Cola, o historiador Frederico Toscano conta a história da presença das forças armadas dos EUA no Recife e as mudanças culturais provocadas, sobretudo do ponto de vista gastronômico

ROSTAND TIAGO
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Publicação: 11/05/2022 03:00

Se hoje é comum ver garrafas de uísques e Coca-Cola nas festas e no dia a dia dos brasileiros, nem sempre foi assim. Essas e outras bebidas e alimentos entraram na nossa rotina de hábitos a partir de um processo de americanização, iniciado com o avanço da indústria cultural estadunidense ainda nos anos 1920. No Recife, acelerou-se fortemente na Segunda Guerra Mundial, com a instalação da Quarta Frota dos Estados Unidos na capital pernambucana, que se tornou um dos principais pontos estratégicos do combate no Atlântico Sul.

A história desse contato físico e cultural da cidade com os EUA e suas forças armadas é destrinchada, sobretudo do ponto de vista gastronômico, pelo historiador Frederico Toscano no livro Yes, nós temos Coca-Cola: A fartura dos EUA e a guerra contra a fome no Nordeste, que será lançado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) amanhã. Toscano investiga o período entre 1930, com a chegada de Vargas ao poder, e 1964, ano do golpe militar, tendo como pilares a abundância que permeia a cultura alimentícia norte-americana e a escassez vivida no país e no Nordeste, colocando esses dois regimes em tensionamento.

O livro é um desdobramento da pesquisa de doutorado de Toscano, realizada na USP. Já se aproximando da segunda metade do século 20, há uma virada de chave no sentido da americanização, pesquisada por ele a partir de um mergulho em diversas fontes que vão do Arquivo Público de Pernambuco e de jornais, como o Diario, até pesquisas de campo nos EUA.

“A pesquisa em fontes primárias sobre alimentação tem uma certa dificuldade porque ela sempre foi tratada como uma coisa secundária, do cotidiano, que bebemos e comemos apenas para sobreviver”, relata Frederico, ao Viver. “Acabei encontrando muita coisa no National Archive, em Maryland, inclusive a visão dos americanos sobre os brasileiros, que era, para eles, um país exótico e muito novo. Eles se espantavam, por exemplo, com a quantidade de pessoas negras nas ruas, também conheceram nossas questões de segurança, o carnaval e buscavam entender o Brasil a partir daí.”

Junto com o Rio Grande do Norte, em especial o município de Parnamirim, Recife sofreu um processo de catalisação da colonização cultural norte-americana com a chegada dos militares na Segunda Guerra. Além das tropas, a cidade recebeu também repórteres norte-americanos e instituições como a United Services Organizations (USO), criada para promover eventos da terra natal dos combatentes. Tal presença deixou marcas na vida cultural da cidade, que vai dos bares aos petiscos, consolidando um avanço que o cinema, as revistas e a música iniciaram anos antes.

“Por mais que houvesse um esforço de Vargas em unificar a cultura brasileira, os Estados Unidos já tinham uma indústria cultural muito solidificada e todo país busca projetar sua cultura no mundo como forma de poder no teatro mundial da geopolítica. E quem tem mais grana, faz isso melhor. Eles fazem isso sem fazer esforço, vendendo mesmo seus produtos”, explica Frederico. “Com a Segunda Guerra, isso vira uma questão de estado, para aproximar a América Latina de si e evitar a aproximação com nazistas. E não houve uma troca, os brasileiros consumiram a cultura americana, e eles não consumiram a nossa.”

O livro chega em um momento em que a insegurança alimentar atinge cerca de 19,1 milhões de brasileiros, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Insegurança Alimentar. A fome no país, que retorna após um período de combate mais intensivo na última década, é uma problemática sobre a qual Toscano se debruça, sobretudo sob forte influência de um pernambucano que é uma das maiores referências mundiais no assunto: Josué de Castro.

“Estamos novamente no Mapa da Fome, por conta de decisões políticas tomadas pelo governo atual. Tínhamos sido retirados dele nos governos do PT, mas agora vemos a inflação galopante, os alimentos mais caros, o agronegócio destruindo a agricultura familiar, que é quem de fato bota comida na mesa do brasileiro, porque a agroindústria cultiva commodity para o mercado externo”, opina o autor. “A ideia de fome sempre foi muito naturalizada no Brasil, era algo como a seca, que vem e não se pode fazer nada. Até que surgiu um pernambucano, médico, escritor, cientista social e geógrafo que falou que não é normal as pessoas passarem fome e que ela só vai acabar com investimento do estado em seu combate. Isso pode parecer óbvio hoje, mas foi revolucionário o que Josué de Castro fez. Minhas ideias de abundância e escassez vêm dele. E ele merece mais reconhecimento no estado”, conclui.