A utopia do criador Gestado por Francis Ford Coppola em mais de 40 anos, "Megalópolis" é uma ambiciosa - ainda que imperfeita - farsa sobre a esperança através da arte

André Guerra

Publicação: 31/10/2024 03:00

Um dos títulos mais comentados entre as ‘grandes produções que nunca saíram do papel’, Megalópolis finalmente ganhou a luz do dia e acaba de entrar em cartaz após exibição especial na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na presença do diretor Francis Ford Coppola. Gestado por mais de 40 anos, com sua primeira versão escrita em 1983, este épico de proporções oníricas afastou os grandes estúdios desde a concepção devido ao teor artístico invendável, o que levou o realizador a colocar cerca de $ 120 milhões do seu próprio patrimônio na produção. O resultado desse risco deliberado é um paraíso da liberdade criativa: um artista na rara absoluta posse dos meios fazendo um manifesto tão cheio de alvos e intenções que é, às vezes, engolido por ele mesmo – mas sempre com sabor de esperança.

Megalópolis trata da cidade retrofuturista Nova Roma, construída sobre as ruínas de Nova Iorque, onde duas figuras disputam o poder: o arquiteto visionário Cesar Catilina (Adam Driver), inventor do material revolucionário Megalon e com um ambicioso plano de reconstruir a cidade a partir dele, e o prefeito Cícero (Giancarlo Esposito), que se opõe às ideias do adversário e possui preocupações de administração distintas. Figuras com interesses diversos surgem, como a apresentadora Wow Platinum (Audrey Plaza) e o ególatra Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), primo de Cesar.

O paralelo entre as fundações políticas da sua nação e o período da República Romana é livremente baseado em uma conspiração famosa da Antiguidade, na qual o patrício à beira da falência Lúcio Sérgio Catilina tentou assassinar o cônsul eleito Cícero e outros políticos, com a intenção de incendiar a cidade depois. Megalópolis aproveita ainda os mistérios e especulações da base histórica para tornar a trama ainda mais ambígua, como a sugestão de que o protagonista teria assassinado a esposa (tal qual foi acusado Catilina, em 63 a.C), mesmo que atribua novos significados à maioria dessas inspirações e personagens.

Coppola comandou alguns dos grandes clássicos da história – a trilogia O poderoso chefão, A conversação, Apocalypse now –, mas não filmava desde Virgínia, de 2011, e demonstra, aos 85 anos, uma vontade de testar seus limites e se renovar tão grande quanto no início da carreira. É cristalino como ele acumulou nesse hiato todos os marcos políticos e sociais de seu país. Do 11 de setembro ao ataque ao Capitólio, inúmeras referências históricas brotam em Megalópolis, cujo efeito é maior no campo das ideias e da composição plástica do que na construção dramática.

Como experiência narrativa de intrigas, paixões e conspirações, portanto, o épico de Coppola provoca pouco envolvimento. É um projeto que se apresenta em sua grandiloquência fantasiosa já nos primeiros minutos, com o protagonista paralisando o tempo, mas que acaba penando para engajar o público quando a trama exige um senso prático de causalidade. Ele aposta na sensorialidade e na artificialidade, no acúmulo de conceitos, mas fica em um limbo entre a farsa, a ironia e uma estrutura linear mais convencional.

Permanece, porém, o fascínio em ver algo dessa escala visual e temática se concretizando na tela tão radicalmente. É na imperfeição que reside boa parte da beleza de Megalópolis, filme despreocupado com convenções comerciais que, através dos planos agigantados de Cesar, se revela um atestado sobre seu próprio criador e sua criatura. Coppola, afinal, também controla o relógio por meio do cinema e externaliza a angústia em ver ameaças cíclicas se avolumando. A utopia que ele defende é, talvez, aquela na qual os artistas têm tempo e liberdade para dar vida à imaginação. Dificilmente haveria demonstração maior de fé no poder da criação.