Foi apenas um sonho Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e trazido ao Brasil pela 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, "Anora" é fábula triste de confronto com a realidade travestida de comédia inebriante, que será lançado em 2025

André Guerra

Publicação: 26/10/2024 03:00

Grande vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024 e um dos filmes mais esperados deste ano, Anora estreou Brasil na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, apesar de seu lançamento comercial ter sido adiado para 2025, ele já está criando, há muito tempo, uma expectativa poderosa e se consolidando entre os favoritos da temporada de prêmios rumo ao próximo Oscar.

Dirigido e escrito por Sean Baker (Tangerina, Projeto Flórida), o filme tem uma das protagonistas mais marcantes dos últimos anos, interpretada por uma atriz que, através dela, teve e terá sua carreira transformada. Mikey Madison interpreta Ani, uma stripper que, em um dia comum de trabalho em um clube do Brooklyn, em Nova York, conhece Vanya, um jovem russo milionário que a contrata para ser sua namorada de luxo por uma semana.

O deslumbre das festas, cassinos, clubes e baladas da cidade embriagam Ani e a plateia no primeiro ato de Anora, que o diretor filma como se ele mesmo estivesse também inebriado por tudo aquilo, na urgência de quem parece ter apenas alguns minutos para rodar em cada locação e com a velocidade da montagem que transmite uma sensação contínua de maravilhamento, sem tempo para descanso. Essa energia solta e delirante na qual os dois personagens se colocam leva à decisão intempestiva de um casamento, o que vai desencadear a fúria dos pais magnatas de Vanya.

No momento em que os capangas da família oligarca aparecem na mansão onde os dois estão vivendo para forçá-los a anular o matrimônio, o paraíso desaba completamente e o humor leve e livre da primeira parte vira uma comédia deliberadamente destrambelhada que mescla um absurdo quase de fábula com um realismo um tanto cruel. Sean Baker se tornou célebre pelo humanismo na sua retratação de grupos marginalizados da sociedade americana e aqui, através de uma protagonista inferiorizada por sua profissão de stripper, ele consegue problematizar o tema sem vitimizações e lamentações.

Pelo contrário: Ani é uma personagem viva, cheia de desejos e angústias,sobre a qual conhecemos mais pela ação imediata do que por explicações prévias. Tudo no filme, na verdade, possui essa força (cômica e dramática) do agora: os blocos de cena são longos e só terminam no seu tempo particular, sem a necessidade de obedecer a padrões de ritmo – o que gera também algumas repetições e arestas narrativas. Esse lado desengonçado é justamente um dos pontos de humanização mais fortes da direção e do roteiro de Sean Baker, que estão sempre quebrando as expectativas da plateia através do humor caótico e da melancolia presente na própria natureza da premissa.

Esta é, na essência, uma história de confronto com a dureza da realidade. A trágica lembrança de como, para a expressiva maioria das pessoas, os sonhos são, quando menos, pueris, e, quando mais, até um tanto cruéis. O fato de o calor e a euforia do início se desdobrarem pela noite de inverno novaiorquina num ritmo frenético de comédia maluca só exprime essa luta inglória da protagonista para reter o mínimo que seja da alegria e realização que lhes parecia prometida.

Nem sempre a graça que o filme quer provocar é compatível com o aspecto social abarcado pela cena e, por isso, parte da comicidade de Anora soa mais desconfortável do que exatamente engraçado. Mas todos os acertos e irregularidades que podem aparecer no trabalho de Baker são bordadas do mesmo tecido: a luminosidade da atuação de Madison, que enche a tela de sensações e carrega a plateia por sua jornada visualmente radiante, mas duramente humana.