Deu bode! Aumento no número de restaurantes especializados em iguaria sertaneja no Recife é o reflexo de uma tendência que é fruto de um processo fundamentalmente cultural: o de ser nordestino

texto: PAULO GOETHE | paulo.goethe@diariodepernambuco

Publicação: 10/12/2016 03:00

 (Blenda Souto Maior/DP/D.A Press )
Era assim que os sertanejos designavam o seu “gado menor”, as criações de caprinos e ovinos que garantiam carne e leite nos séculos iniciais de colonização do interior do Nordeste. O historiador cearense Capistrano de Abreu foi um dos primeiros a destacar que, nesta região inóspita, a alimentação ajudou a forjar o temperamento de um povo. Os poucos recursos tinham que ser bem administrados para enfrentar os períodos de estiagem. As paragens com poucas almas humanas não permitiam a espera por ajuda externa. Mandioca, milho, feijão e fava garantiam o acompanhamento para uma boa carne assada ou guisada, sem falar nos miúdos. O bode reinava.

Em 1926, sete anos antes de lançar sua obra mais importante, Casa-Grande & Senzala, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre já inovava ao tratar de um tema pouco valorizado até então: a estética e as tradições da cozinha brasileira. Das três regiões culinárias que se destacariam no país, segundo o autor – a baiana, a nordestina e a mineira – seria a cozinha do Nordeste agrário a que melhor equilibraria ou harmonizaria as influências portuguesas, africanas e ameríndias.

No campo da etnografia alimentar, o folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo destacava que o Sertão nordestino foi a região que menos teve alterações desde as origens da cozinha nacional. “O de–comer no Sertão conservou-se imóvel em seus padrões durante séculos”. Um cardápio que continua sendo, até hoje, o mais equilibrado do país. O médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro também ressaltava a dieta sertaneja como a “mais equilibrada e racional”. É na carne de bode, no leite e no queijo que o sertanejo se serve de proteínas e apresenta a resistência que impressionou Euclides da Cunha. Assim como Cascudo, Josué de Castro ressaltava a importância de se estudar mais a culinária sertaneja, refinada em sua rusticidade. Segundo ele, esta gastronomia, “de tão espartana sobriedade”, contrasta com a rebuscada cozinha do Nordeste açucareiro, “sempre tão adocicada ou lambuzada de azeite”.

O sociólogo paulista Carlos Alberto Dória, autor de A formação da culinária brasileira, enfatiza que a culinária sertaneja, mesmo sendo tão rica em sabores e significados, nunca foi muito valorizada pelas elites brasileiras, por representar uma comida feita “por e para” pobres. O sertanejo, consumidor de vísceras e de pequenos animais – o que, na prática, o torna o mais puro herdeiro da tradição ibérica – nunca gozou do prestígio da culinária “brasileira” vinda do consumo de produtos marinhos, açucarados ou representantes da herança africana, traduzida em pratos da culinária baiana.

Mas a crescente urbanização do Nordeste mudou este quadro. O antropólogo carioca Raul Lody, na apresentação do livro Culinária caprina: do alto sertão à alta gastronomia, apontava a tendência de valorização da gastronomia sertaneja pelo aumento do consumo de carne de bode. “O gosto é construído enquanto um processo fundamentalmente cultural. Comer carne de caprinos é uma maneira de sentir mais nordestino e assim mais brasileiro”. O animal que tão bem se adaptou ao ambiente do Sertão, a ponto de a palavra “cabra” designar o sujeito capaz de resistir à vida mais agreste, ganhou status culinário diferenciado por ter carne de sabor marcante, macia e, principalmente, com baixo teor de gordura.

Através do resgate de sua tradição, a cozinha regional de raiz mais interiorana dialoga com suas populações mais urbanas. O Sertão nordestino, com a sua culinária típica, fruto do isolamento provocado pelo seu processo de ocupação, suas intempéries climáticas e o banditismo em larga escala (o cangaço), hoje possui um diferencial que é a sua identidade em um mundo cada vez mais homogêneo. A região dos cabras e das cabras sobrevive, com o prato cada vez mais cheio.