Rosália Vasconcelos
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Publicação: 15/03/2015 03:00
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Entre as muitas histórias que escrevem uma cidade, talvez as mais poéticas sejam aquelas que se definem nas horas em que o sol se põe. Foi na boemia recifense que muitos poetas se descobriram amantes das letras, homens comuns se tornaram artistas, políticos ganharam as tribunas e intelectuais discutiram a vida da cidade. Ou simplesmente desconhecidos se tornaram grandes amigos. Mas o Recife envelheceu. Não apenas nos concretos, madeiras e portais das paredes dos sobrados antigos dos bairros do Recife, Santo Antônio e São José. Enrugou também a própria ideia de promover cultura e encontros. “Um estabelecimento que se sustenta por mais de 70 anos serve muito mais do que comida e bebida. Serve também cultura, estabelece trocas e amizades”, comentou o economista e boêmio Alexandre Cisneiros. Ele lamenta que no Recife não exista uma política de preservação de “lugares boêmios” e só haja espaço para bares e restaurantes “de modismo”, que não tardam a fechar. Para o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes, há muito pouco de poesia nas noites recifenses, o que também pode ser explicado pelo próprio esvaziamento dos bairros centrais. Poucos sobrevivem ao tempo e à fugacidade das relações. São estabelecimentos que, ainda que não tenham oficialmente o título de patrimônio, são carregados de história
Bar Savoy
Para o ex-prefeito do Recife Gustavo Krause, as paredes do Edifício Sigismundo Cabral, na Avenida Guararapes, ainda abrigam a mística e a magia que fizeram parte do Bar Savoy, inaugurado em 1944 e fechado em 1992. A sua representatividade para o Recife fez com que o Grupo Ser Educacional prometesse a revitalização do estabelecimento, um dos símbolos da resistência da boemia recifense e reduto da intelectualidade da cidade. “O roteiro boêmio do Recife está se acabando. O Savoy, imortalizado nos versos de Carlos Pena Filho, é um exemplo dessa extinção. Hoje é só memória”, lamentou Krause.
Bar 28
Conhecido por servir os melhores uísques da cidade a preços justos, foi imortalizado nas telas da artista plástica Tereza Costa Rêgo. Mas não é só por isso que o procurador do estado, Sílvio Galvão, frequenta o local há mais de 50 anos. “Numa roda boêmia, ninguém visita psicólogo. Não damos importância à bebida, mas à camaradagem, e conversamos sobre política, futebol, cultura e literatura”, conta Galvão. O dono do 28, Carlos Henrique Pereira da Silva, acredita que os 73 anos do bar, fundado por seu pai, o guarda portuário Antonio Candido da Silva, se deve à boa relação de amizade com os clientes. “Na época que meu pai criou o Scott Bar, baixavam boêmios e marinheiros que gostavam de trocar uísque por Bacardi. Como vinham em grupos, as mesas eram colocadas sempre juntas, o que permanece até hoje”, explica Henrique.
Restaurante Leite
Apesar de não funcionar à noite, as tardes de happy hour pós-almoço no Leite até hoje reúnem políticos, intelectuais, empresários, artistas e boêmios. Já se sentaram nas suas mesas Assis Chateaubriand, João Goulart e João Pessoa. Desde 1882, ano de sua inauguração, entre um copo e outro de uísque são discutidos temas diversos. E é sobre suas mesas onde ocorreram - e ainda ocorrem - muitas discussões políticas. “O Leite, além de um bom almoço, traz a poética da historicidade, que hoje não existe mais em restaurantes de moda”, avalia o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes.
As Galerias (Maltado)
Quando funcionava na Avenida Marquês de Olinda, a lanchonete sem portas funcionava 24 horas e recebia parte da boemia que não ia pra casa antes do raiar do sol. Como as mulheres não podiam frequentar zonas de baixo meretrício, como era o caso do Bairro do Recife até a década de 1980, talvez As Galerias tenha sido a primeira lanchonete a realizar um serviço de drive thru, atendendo suas clientes dentro dos carros e charretes. “Com 86 anos, e graças ao tradicional maltado, é um dos raros estabelecimentos gastronômicos que recebeu do município o título de patrimônio cultural, gastronômico e imaterial”, orgulha-se o proprietário, Jorge Henrique Gomes.
Mustang
O Recife velho dos poetas, boêmios e músicos também passou pelo bar Mustang, fundado em 1969. O local precisou passar por uma mudança de perfil para sobreviver ao tempo. Quem chega lá hoje e encontra crianças e casais não diz que ali também foi ponto de encontro da boemia recifense. “O Mustang também era reduto de poetas e artistas. Por muitos anos, só restou ele e o Savoy na Boa Vista. Mas com o esvaziamento do Centro, os boêmios migraram para seus bairros, como o Bar do Gordo e da África, na Torre, que hoje recebem o que restou da boemia da cidade”, disse o arquiteto e urbanista José Luiz da Mota Menezes.