As gaivotas da Rua Azul
Crianças e adolescentes da Favela do Papelão, em São José, não têm espaços públicos de lazer. Saltar de uma altura de oito metros em direção ao Capibaribe é a única alternativa
Marcionila Teixeira (texto)
marcionila.teixeira@diariodepernambuco.com.br
Publicação: 18/03/2017 09:00
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As águas sujas de tanto maltrato humano são a melhor companhia das crianças e adolescentes daquele perímetro esquecido pelos sucessivos governos. Entre a passarela e a correnteza, os saltos provocam um frio na barriga, disparam a adrenalina. Diante da falta de espaços públicos de lazer, são uma perigosa e emocionante alternativa de diversão para os meninos e meninas da Rua Azul.
O primeiro salto da passarela de Micael de França Pereira, 10 anos, foi estimulado pelos amigos. Calcula-se uma queda a uma altura de oito metros. A conta também envolve uma imensidão de coragem. Willames dos Santos, 13, salta desde os nove anos. Já alcançou o patamar do invejável salto mortal.
- E como você se sente?
- Me sinto um passarinho.
O malabarismo entre o céu e o rio tem nomes. Folha seca, flecheiro, parkur, bomba, macaquinho, agulhinha… Cada um tem um nível de dificuldade. Denilson Bezerra de Andrade, 12 anos, pula das pedras às margens do rio. Não gosta da sensação de frio na barriga. A água do velho Capibaribe escorre pelo rosto, escapa entre os dedos. Deixa os corpos mais leves para boiar.
“Essa é como se fosse nossa praia”, avalia Maria Eduarda Menezes da Silva, 15, a única menina do grupo naquele dia. Além de Eduarda, apenas a irmã dela também salta da passarela na comunidade. O mais difícil, diz, é encarar o discurso das outras meninas. “Elas têm frescura, dizem que a água é suja. Não ligo. Além disso, os meninos são como irmãos para mim”, destaca Maria Eduarda.
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A infância pobre pede licença para ocupar a cidade
A Favela do Papelão não tem estrutura pública de lazer para crianças e adolescentes. “A gente brinca com o que tem. Sobe nas fruteiras, toma banho no rio”, conta Miriam Maria da Silva Santana, 15. A principal reivindicação dos meninos é um campinho de futebol. Hoje eles jogam bola no meio da Rua Azul e são obrigados a parar a partida durante a passagem dos veículos.
O campinho de futebol mais próximo fica perto da Academia da Cidade, no Coque. Mas nem sempre os meninos da Azul são bem recebidos por lá. Os jovens vivem em territórios divididos pelo tráfico de drogas. Em meio à carência de tudo, a Emlurb e a URB afirmam não ter qualquer projeto de campo de futebol ou de outra estrutura de lazer para os jovens do entorno da Rua Azul.
A Polícia Militar costuma fazer rondas perto da passarela. Em dias de maré cheia e brincadeira, ordena a saída dos jovens da água. “Todo PM é orientado a cuidar da segurança do cidadão. Geralmente essas crianças estão em situação de vulnerabilidade, tomando banho no rio ou pegando carona em ônibus, por exemplo. Orientamos para os possíveis danos da brincadeira. Se verificamos que estão sós e sob efeito de drogas lícitas ou ilícitas, podemos encaminhar para o Conselho Tutelar”, explica o coronel Aílton Araújo, diretor integrado metropolitano. Não por acaso, a brincadeira é coibida principalmente no Marco Zero, no Bairro do Recife, um dos principais pontos turísticos da capital.
O mesmo estado “preocupado” com a proteção dos vulneráveis não oferta alternativas de lazer seguras. Os meninos e meninas da Rua Azul não estão nos planos da cidade. São invisíveis em seus anseios. A própria Prefeitura do Recife alega não ter cadastro com números de moradores e imóveis do lugar.
Humberto Miranda é professor, pesquisador e autor do livro História da Infância em Pernambuco. Olha com desconfiança para o discurso de segurança feito pela PM. “Os jovens que estão nas pontes tomando banho de rio ou nas praças se apropriam do espaço urbano do jeito deles. Não vivem necessariamente em situação de rua ou de abandono. A maioria tem suas casas e suas famílias nas comunidades do entorno. Essa é a forma que encontraram de viver a cidade onde moram. O sentido que eles dão para o rio é diferente do que nós adultos damos. Somos mais disciplinados, temos outras preocupações”, reflete.
Ao longo da história da infância no Brasil, diz Miranda, são muito comuns medidas cujo fim é a higienização do espaço urbano maquiadas pelo discurso da preocupação com a segurança. “A fala da segurança aparece em primeiro plano e a sociedade legitima porque ela também se sente segura com essa atuação policialesca e disciplinar. Acha que essa é a solução correta. Será que a segurança dos meninos realmente nos preocupa?”, questiona. Para o estudioso, faltam espaços apropriados de lazer nas comunidades. “É preciso ter cuidado com esse discurso que muitas vezes oprime em nome da segurança, nega o direito de ir e vir. Afinal, qual é o menino que está pulando no rio?”, pontua.
"Os jovens estão se apropriando do espaço urbano do jeito deles. Não estão necessariamente em situação de rua"
Humberto Miranda, Professor e pesquisador
Na escola, uma lição sobre a importância dos sonhos
A maioria das crianças e adolescentes ouvida pela reportagem estuda na Escola Municipal Reitor João Alfredo, nos Coelhos, bairro vizinho à Rua Azul. Após uma convivência de dois dias com os meninos e meninas, mostramos para várias turmas a videorreportagem feita com eles e o resultado das fotos, todas exibidas em sala com a ajuda de um cordão e de pegadores de roupa. Também refletimos em sala de aula sobre o direito à ocupação da cidade, a participação das meninas na brincadeira, a falta de lazer na Favela do Papelão, os riscos dos saltos nos rios, a ação policial e a proibição da brincadeira por parte dos pais e responsáveis.
Miriam Maria da Silva Santana, 15, identificou-se com Eduarda, a única menina retratada saltando na reportagem. “A infância dela foi na maré. A minha também foi. Eu mesma cheguei aos Coelhos com sete anos e somente com 12 comecei a estudar por causa de problemas pessoais”.
Perguntamos também sobre o resultado da videorreportagem. Se estavam satisfeitos com as cenas, depoimentos, roteiro. Quem respondeu primeiro foi Jadson da Silva Santos, 14. “Falta a gente dizer os sonhos da gente. É importante falar do futuro, do que a gente quer ser para ajudar a família, os pais”. A maioria apoiou. Jadson mora no Cabanga e já saltou no rio. Hoje não participa mais da brincadeira. A avó proibiu a diversão depois de ver o neto contaminado por um germe. Jadson quer ser delegado. Pretende levar a lei aonde ela não existe. Na família, ele tem parentes próximos presos. E sofre essa ausência.
No final, presenteamos as fotos para as crianças e adolescentes. Uma das alunas sugeriu deixar o material para as outras turmas terem a mesma oportunidade. A maioria optou por guardar aquelas impressões consigo, em casa. Felipe Gonçalves falou em colocar o retrato dele saltando em uma moldura e pendurar no quarto.
Aqueles meninos e meninas ficaram no coração de cada um dos integrantes da nossa equipe. Ensinaram sobre gentileza, saltos, cooperação e resiliência em meio à falta de infraestrutura, pobreza e desestrutura familiar. Por isso, dedicamos esta matéria aos jovens da Azul.
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Quando o rio representa prazer, doenças e risco de morte
O prazer dos jovens tem o tamanho do perigo de machucados, contaminação por doenças, afogamentos e morte. Lucas Michael, 11, mostra a cabeça ferida durante um salto. “Na hora saiu muito sangue, mas agora tô bem”. Willames já teve doenças de pele. Mora com a avó e ela não gosta dos saltos no rio. Acha a brincadeira perigosa. Kaylany, 11, tem um irmão de 13 anos que tomava banho no Capibaribe. “Minha mãe terminou proibindo por causa dos jacarés que aparecem de vez em quando. Ela diz que também tem o perigo de se machucar, pegar doença com água suja”.
A própria estrutura de ferro da passarela está danificada, com trechos quebrados ou faltando. Na água, a segurança também é pouca. Além da lama acumulada no fundo - o que pode ser um risco para prender os pés - o rio carrega dejetos variados, alguns perigosos para as crianças. “A gente ajuda um ao outro. Isso aqui mesmo, se alguém pular e bater, fura a cabeça. Por isso tirei da água”, alerta Edilson Bezerra de Andrade, 16, apontando para um resto de madeira com pregos usado para a construção da ponte ou em obras na própria favela. O rio está cheio desses descartes.
O médico infectologista Demetrius Montenegro, do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, unidade de saúde referência no assunto, ressalta que o principal problema dos rios urbanos são os dejetos jogados em seus leitos. Os canais, diz ele, oferecem ainda mais riscos de contaminação em comparação com os rios por conta do menor volume de água. “É possível ter doenças do intestino ou da pele. Se o corpo tem um arranhão, por exemplo, a região pode ser contaminada. Felizmente, não temos surto de cólera no estado, mas há riscos de contrair o tétano, caso a lama tenha a bactéria”.
A leptospirose, provocada por fezes e urina de ratos, é outro risco. “Passo nos canais da Agamenon Magalhães e do Arruda e vejo muitas crianças brincando. Teoricamente o canal serve para receber as águas pluviais, mas o lixo acumulado nas margens atrai rato”, acrescenta o médico. A lista de doenças é extensa. Segundo o especialista, se em uma comunidade sem saneamento existe alguém contaminado com hepatite A, o esgoto dessa localidade segue para um canal que, automaticamente, torna-se uma fonte de contaminação da doença.
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A favela onde reciclar significa sobreviver
Marcelo Souza dos Santos, 49, nasceu na Rua Azul e é líder comunitário. Segundo ele, 80% das famílias da comunidade vivem do recolhimento de papelão, plástico e ferro. O material é disposto na calçada que dá para o muro do metrô ou é acumulado em uma cooperativa, na Rua Imperial. As casas são muito pobres, algumas delas, palafitas erguidas no mangue. Além da habitação precária, a falta de saneamento e de calçamento são os principais problemas. Água encanada, diz Marcelo, tem todo dia. Assim como iluminação pública.
A pobreza dos moradores se reflete nas ligações clandestinas de luz. E isso pode significar tragédias, como incêndios provocados por curto-circutos. Marcelo lembra de pelo menos dois de grande porte nas últimas décadas. O mais chocante deles, no entanto, teria sido provocado por uma panela esquecida no fogo, em março de 2011. Miguel, 4, João Vítor, 5, e Sara, 6, não resistiram depois de terem mais de 90% dos corpos queimados. Eles estavam sozinhos em casa. A mãe, Sandra Santos, na época com 39 anos, havia saído para catar papelão. Completava o sustento dos filhos com esmolas. Na maioria das vezes, as crianças acompanhavam a mãe. A morte de dois jovens por afogamento, obrigados pela PM a pular da ponte no carnaval de 2006, também marcou aquele trecho do rio para sempre.
A promessa de construção de um conjunto habitacional para a população ainda não foi cumprida pelo poder público. As obras do Vila Brasil 1 se arrastam desde a primeira gestão do ex-prefeito João Paulo. No condomínio estavam previstos uma quadra de esportes e um centro de convivência. “Enquanto isso, os meninos ficam no rio e as meninas passam o dia no celular. O rio já teve morte. Se pelo menos tivesse um bombeiro civil”, lamenta Marcelo. A Secretaria de Habitação informou que o conjunto está em obras. O prazo de entrega é o final deste ano.
Números da Favela do Papelão
- 2 mil moradores
- 10 becos
- 80% da população vivem de reciclagem de papelão, plástico e ferro
- R$ 300 é a renda média por mês dos catadores
- 1960 é a década em que aconteceu a ocupação