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O risco de dormir ao lado de uma barreira
Habitantes desses locais vivem o paradoxo de deixar as próprias casas em busca de descanso, após dois dias tensos por causa da chuva
Marília Parente
Publicação: 07/02/2025 03:00
Olhos fundos, dores de cabeça, crises de ansiedade e mutilações. Muito além dos destroços deixados pelo deslizamento da barreira que matou Conceição e Nicole Braz, de 51 e 23 anos, na última quinta-feira, a geografia dos corpos dos moradores do Córrego da Bica, no bairro de Passarinho, também compõe o cenário desenhado pela ausência de preparo de parte das encostas do local para a chegada das chuvas. No Recife ainda existem 25 mil pontos de risco, segundo dados da Gestão Municipal. Reunidos nas calçadas, os habitantes desses locais vivem o paradoxo de deixar as próprias casas em busca de descanso, após uma semana de fortes precipitações e, consequentemente, noites em claro.
“Hoje ninguém vai dormir. Deixo o cadeado da minha casa aberto para o caso de a barreira deslizar. De hora em hora, acordo meu filho de 15 anos, para dar tempo de a gente fugir. O de quatro anos, deixo dormir um pouco mais, porque, qualquer coisa, consigo pegar no braço”, diz a dona de casa Juliana Cosme dos Santos, de 38 anos, que reside em uma barreira próxima àquela em moravam Nicole e Conceição. Esta última, aliás, era sua madrinha e filha da parteira responsável por trazê-la à vida, conhecida na comunidade como dona Odete. “Meu Deus, poderia ter sido com a gente. Sou nascida e criada aqui, meus irmãos todos moram em barreira. Por causa dessas coisas, também sofro de ansiedade”, lamenta.
Preocupada com o futuro dos filhos, Juliana chegou a participar de algumas reuniões da associação dos moradores local com o intuito de debater a questão das encostas da comunidade. Alguns dos encontros eram frequentados, inclusive, por Nicole. “Minha mãe passou por isso, eu passo por isso e não quero que isso continue na vida dos meus filhos. A gente queria quebrar esse ciclo. Ter a dignidade de dormir em paz”, acrescenta.
Mãe de Juliana, a dona de casa Juracy Cosme dos Santos, de 64 anos, precisa andar com o auxílio de muletas desde que se acidentou seriamente em uma das barreiras da comunidade. “Pisei no chão, a terra estava ‘fofa’ e meu pé afundou. Rolei até embaixo, quebrei o fêmur e fraturei a bacia”, conta. Por sofrer de pressão alta, ela também teme passar mal durante momentos de tensão comuns na comunidade no período das chuvas. “Eu estou aqui porque Deus é grande. Foi um choque quando meu filho me ligou e acordei com a notícia do desabamento. Conceição era minha comadre, uma pessoa ótima. A gente está sentindo a dor da família”, afirma.
ROTINAS SUSPENSAS
De acordo com a Prefeitura do Recife, desde 2021, foram concluídas 5.918 obras em áreas de morro da cidade, incluindo construções de contenção de grandes encostas, obras do Programa Parceria, recuperação de escadarias e implantação de corrimãos, com investimentos que somam R$ 332,5 milhões. A gestão municipal informou ainda que mais de 11 mil famílias foram beneficiadas por 139 obras já concluídas, enquanto outras 313 estão em andamento ou prestes a serem iniciadas.
Para aqueles que ainda não foram contemplados pelas intervenções, contudo, os dias de chuva continuam comprometendo a rotina. Já era quase meio-dia da última quarta-feira, quando a cuidadora de idosos Camila Edvânia Alves, de 35 anos, se preparava para almoçar na calçada. Na madrugada em que Conceição e Nicole morreram, a barreira que dá para o quintal de sua casa também sofreu deslizamentos. “Eu não tinha conseguido dormir ainda, mas me assustei com o barulho. Peguei logo o celular, juntei os documentos e deixei o portão aberto, para qualquer coisa correr”, conta.
Com fortes dores de cabeça, Camila precisou faltar ao trabalho. “É uma diária que vai fazer falta, mas estou me sentindo mal. Ainda tenho medo de sair de perto da casa, a barreira desabar e eu não estar aqui para tentar salvar minhas coisas. Me separei há três meses e vim morar nessa casa, que é da minha mãe, para sair do aluguel. Esse problema sempre existiu aqui, mas dessa vez está pior”, coloca.
Exausta, ela conta, com os olhos fundos e semicerrados, que ainda não sabe onde passará as próximas noites ou quando poderá retomar seu trabalho. “A vida fica paralisada. Estava recomeçando minha vida e, agora, as coisas que ainda estou pagando no maior sacrifício, a barreira pode levar. Hoje, não tenho condições de planejar nada. Só mesmo de procurar um lugar para descansar e pedir proteção a Deus para todos nós. Infelizmente, duas pessoas já se foram”, conclui.
“Hoje ninguém vai dormir. Deixo o cadeado da minha casa aberto para o caso de a barreira deslizar. De hora em hora, acordo meu filho de 15 anos, para dar tempo de a gente fugir. O de quatro anos, deixo dormir um pouco mais, porque, qualquer coisa, consigo pegar no braço”, diz a dona de casa Juliana Cosme dos Santos, de 38 anos, que reside em uma barreira próxima àquela em moravam Nicole e Conceição. Esta última, aliás, era sua madrinha e filha da parteira responsável por trazê-la à vida, conhecida na comunidade como dona Odete. “Meu Deus, poderia ter sido com a gente. Sou nascida e criada aqui, meus irmãos todos moram em barreira. Por causa dessas coisas, também sofro de ansiedade”, lamenta.
Preocupada com o futuro dos filhos, Juliana chegou a participar de algumas reuniões da associação dos moradores local com o intuito de debater a questão das encostas da comunidade. Alguns dos encontros eram frequentados, inclusive, por Nicole. “Minha mãe passou por isso, eu passo por isso e não quero que isso continue na vida dos meus filhos. A gente queria quebrar esse ciclo. Ter a dignidade de dormir em paz”, acrescenta.
Mãe de Juliana, a dona de casa Juracy Cosme dos Santos, de 64 anos, precisa andar com o auxílio de muletas desde que se acidentou seriamente em uma das barreiras da comunidade. “Pisei no chão, a terra estava ‘fofa’ e meu pé afundou. Rolei até embaixo, quebrei o fêmur e fraturei a bacia”, conta. Por sofrer de pressão alta, ela também teme passar mal durante momentos de tensão comuns na comunidade no período das chuvas. “Eu estou aqui porque Deus é grande. Foi um choque quando meu filho me ligou e acordei com a notícia do desabamento. Conceição era minha comadre, uma pessoa ótima. A gente está sentindo a dor da família”, afirma.
ROTINAS SUSPENSAS
De acordo com a Prefeitura do Recife, desde 2021, foram concluídas 5.918 obras em áreas de morro da cidade, incluindo construções de contenção de grandes encostas, obras do Programa Parceria, recuperação de escadarias e implantação de corrimãos, com investimentos que somam R$ 332,5 milhões. A gestão municipal informou ainda que mais de 11 mil famílias foram beneficiadas por 139 obras já concluídas, enquanto outras 313 estão em andamento ou prestes a serem iniciadas.
Para aqueles que ainda não foram contemplados pelas intervenções, contudo, os dias de chuva continuam comprometendo a rotina. Já era quase meio-dia da última quarta-feira, quando a cuidadora de idosos Camila Edvânia Alves, de 35 anos, se preparava para almoçar na calçada. Na madrugada em que Conceição e Nicole morreram, a barreira que dá para o quintal de sua casa também sofreu deslizamentos. “Eu não tinha conseguido dormir ainda, mas me assustei com o barulho. Peguei logo o celular, juntei os documentos e deixei o portão aberto, para qualquer coisa correr”, conta.
Com fortes dores de cabeça, Camila precisou faltar ao trabalho. “É uma diária que vai fazer falta, mas estou me sentindo mal. Ainda tenho medo de sair de perto da casa, a barreira desabar e eu não estar aqui para tentar salvar minhas coisas. Me separei há três meses e vim morar nessa casa, que é da minha mãe, para sair do aluguel. Esse problema sempre existiu aqui, mas dessa vez está pior”, coloca.
Exausta, ela conta, com os olhos fundos e semicerrados, que ainda não sabe onde passará as próximas noites ou quando poderá retomar seu trabalho. “A vida fica paralisada. Estava recomeçando minha vida e, agora, as coisas que ainda estou pagando no maior sacrifício, a barreira pode levar. Hoje, não tenho condições de planejar nada. Só mesmo de procurar um lugar para descansar e pedir proteção a Deus para todos nós. Infelizmente, duas pessoas já se foram”, conclui.