O resgate da "advogada dos mil casos" Pesquisa destaca a atuação de Mércia Albuquerque, que se dedicou a defender os presos políticos na época da ditadura

TÉRCIO AMARAL
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Publicação: 27/08/2016 03:00

Uma cena cruel da ditadura militar (1964-1985) em Pernambuco fez surgir uma das maiores defensoras dos direitos humanos no estado: a advogada Mércia Albuquerque (1934-2003). Ao ver o ex-deputado Gregório Bezerra ser arrastado por agentes da repressão com uma corda no pescoço e torturado pelas ruas do bairro de Casa Forte, na Zona Norte do Recife, pouco depois do golpe de 1964, sua carreira jurídica tomou um novo rumo. Aos 30 anos, Mércia optou em se dedicar, exclusivamente, a causas de presos políticos, ganhando inclusive o status de “advogada dos mil casos”. Sua história, ainda relegada ao anonimato dos bastidores, foi redescoberta em um trabalho recente de mestrado em história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de autoria de Tasso Araújo de Brito.

Além de cliente, a partir de 1966, Gregório tornou-se amigo, mas outros presos entraram em sua lista, como o atual vice-prefeito do Recife Luciano Siqueira (PCdoB). Em seus arquivos, que foram doados à ONG DHNET, de Natal, no Rio Grande do Norte, é possível ver fotografias ao lado de Gregório, os dois sorrindo dentro de uma prisão. Os dois parecem admirar-se mutualmente. “Mércia o defendeu, mas ele foi condenado a 19 anos. Em uma carta, ele chega a brincar com ela, pois acreditava que iria ser condenado a pena máxima de 20 anos”, conta Tasso, que é professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). A brincadeira pode demonstrar bom humor e intimidade, mas o caso de Gregório não era um dos mais fáceis.

O militante de esquerda era monitorado desde a Era Vargas, na década de 1930, e, em Pernambuco, era ligado ao movimento camponês. Ainda pesava sobre ele a acusação de incendiar um quartel na Paraíba. Estar vivo já era um milagre. Não há registros de filiação de Mércia a qualquer partido de esquerda, mas em seu prontuário do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (Dops-PE) consta a informação que a advogada era membro da Sociedade de Amigos da União Soviética. “Era comum ameaçarem a vida de seu filho (Arandi). Ela chegou a ser presa (pode ser considerado sequestro) cerca de 12 vezes, mas sem acusação formal, ou seja, sem deixar registros. Pura força de um estado ditatorial”, diz Tasso, ao afirmar que o irmão da advogada, chamado Sandino, também foi preso e no interrogatório o nome de Mércia era o assunto principal.

Apesar da estreita ligação com Pernambuco, Mércia nasceu em Alagoas, em 23 de dezembro de 1934. Mudou-se ainda adolescente para o Recife, onde veio morar com os tios. Casou-se com o primo Otávio Albuquerque, com quem namorava desde os 17 anos.

A pesquisa de Tasso, intitulada A toga e a espada: Mércia Albuquerque e Gregório Bezerra na Justiça Militar (1964-1969), nasceu justamente de uma observação: no seu acervo, apenas o caso do pernambucano Gregório estava minimamente organizado, página por página. Antes de morrer, em 29 de janeiro de 2003, Mércia recebeu o título de cidadã de Natal e do Rio Grande do Norte. O afeto dos pernambucanos não foi retribuído na mesma medida.