O que foi 1817

Denis Bernardes *

Publicação: 04/03/2017 09:00

A Revolução de 1817 foi o único movimento político que afrontou vitoriosamente o reino de Portugal desde o início da sua história, em 1140. Teve curta duração, mas seu significado e consequências foram imensos. E, ao contrário de todos os outros movimentos semelhantes que a precederam, somente ela rompeu efetivamente com a monarquia lusitana, com suas bases ideológicas, com seus ritos, com sua legitimidade de origem divina e com seu modo de funcionamento baseado, sobretudo, em uma justiça cruel e em uma estrita censura política e religiosa.

Vale lembrar que todos os projetos anteriores a 1817 não passaram, justamente de projetos. Ou seja, de conversas, de planos mais ou menos vagos, de desejos expressos entre iniciados, de aspirações a mudanças que não se efetivaram por falta de condições, de meios e de oportunas decisões. Apenas a chamada Revolução dos Alfaiates, ou Inconfidência Baiana, de 1798, chegou a afixar alguns escritos em portas de igrejas, anunciando mudanças políticas e sociais inspiradas no jacobinismo francês, embora - e isto é o mais importante - também tivesse apoio da gente da plebe, como artesãos, soldados, libertos e escravos. No Pernambuco de 1817, porém, e no que viria um dia a ser o Nordeste, a história foi outra.

Em consequência, as penas aplicadas aos revolucionários foram mais sanguinárias, não só pelo número das execuções capitais, mas pelo esmero que as acompanhou. Para exemplificar o requinte repressivo com o qual o príncipe regente D. João mandou castigar os patriotas de 1817, basta lembrar o que foi feito com o cadáver do padre João Ribeiro Montenegro, membro do governo provisório de Pernambuco, cuja cabeça ficou exposta por dois anos em praça pública, no Recife. Assim terminavam - era a mensagem para os recifenses de então - os que ousavam insurgir-se contra os sagrados direitos da monarquia.

Mas o que foi 1817, para dizer o essencial?

1817 não foi uma tentativa ou um ensaio para instaurar o tempo da Pátria. Foi, na verdade, outra Independência, embora derrotada. Os que deram suas vidas por ela, os que nela jogaram suas forças, esperanças e bens, não estavam fazendo nenhum ensaio de um futuro projeto de Nação. Estavam criando uma nova Nação.

1817 foi a mais radical ruptura com o absolutismo monárquico português e com a sociedade do Antigo Regime jamais acontecida em toda a longa história lusitana. Pôs em prática, de fato, os princípios inscritos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Jogou por terra o direito divino dos reis e ousou criar uma Nação, afirmando a sua soberania. Aboliu as distinções sociais baseadas nos padrões da sociedade aristocrática do Antigo Regime. Projetou a separação dos poderes, segundo o modelo do Espírito das Leis, de Montesquieu. Teve a precedência de propor a primeira constituição brasileira.

Aí onde havia a submissão do súdito, criou a possibilidade da existência do cidadão. Deu ao povo o direito de falar de igual para igual com os distinguidos pelas comendas reais. Anunciou a possibilidade da abolição da escravidão. Não foi pouco e ainda está por ser devidamente reconhecido. 

* Denis Antônio de Mendonça Bernardes (1950/2014), PhD, foi professor da UFPE e um dos maiores historiadores da sua geração. Texto acima é parte do prefácio para o romance A noiva da revolução, de Paulo Santos