Diario urbano

Publicação: 01/07/2017 03:00

Ode ao jumento

O jegue é, antes de tudo, um forte. Mais pela resistência e capacidade de adaptação do que pela força física. Afinal, o nordestino abdicou de tirar proveito dessa qualidade do animal. Substituiu o lombo do jumento pelo ronco das motos. Quer prova? Está no povoado do Capim, em Petrolina. No meio da caatinga, sertanejos desmontam de seus veículos, neste fim de semana, para se divertir. E o jegue é o mote da festa. Do mote, nasceram competições e rezas. Jegue, afinal, é coisa séria, sagrada, segundo Maíra Amariz, agrônoma e coordenadora do evento. Ou melhor, da Jecana, palavra vinda da mistura de jegue e gincana e cunhada nos anos 1970, quando o radialista Carlos Augusto, pai de Maíra, começou a organizar o evento no Capim. Na época, a ameaça aos jumentos era grande. Matava-se para a produção de charque. Com a gincana, a pretensão era sensibilizar os governos para o perigo de extinção do animal. A princípio, vieram as corridas. O roteiro da festa, talvez a mais antiga do estado em homenagem ao jumento, foi ganhando elementos. Incorporou um desfile de bichos fantasiados, batizado de Jegue Fashion, um palco para sanfoneiros e, na capela do distrito, uma missa. Tudo pensado para fazer do jegue o artista central, para evitar atropelos, o que é praticamente impossível. Afinal, brinca a coordenadora, negócio envolvendo jumento costuma ser desmantelado. Jurado promete integrar a comissão julgadora e não aparece. Jegue tem o nome inscrito e o dono não dá as caras. Nada, contudo, que comprometa a Jecana. Ao final, um apaixonado pela causa aceita ser jurado, a lista de competidores é reorganizada. E a sanfona ronca para embalar a história do animal que contribuiu na tarefa de desbravar os sertões.

Estrada de barro
Quando os jegues correm ou desfilam no Capim, a poeira sobe. Ou a lama aumenta. Pavimento não há no distrito, distante 25 quilômetros do centro de Petrolina. O chão de terra batida confere ao lugar, embora seja o piso de paralelepípedo o sonho dos moradores, a aparência original da caatinga do Sertão do São Francisco.

Quatro décadas
Os festejos para o jegue, no Capim, começaram dois anos antes de Panelas, cidade conhecida nacionalmente pelo Festival Nacional do Jerico. Enquanto neste município do Agreste as comemorações marcaram 44 anos, em maio deste ano, as do Capim alcançarão a 46ª edição consecutiva. Os dois atraem turistas de diversos estados.

Bem cuidados
Para declarar o respeito ao jegue, os festejos de Panelas e do Capim seguem à risca as normas de proteção animal. É proibido nas corridas o emprego de instrumentos que maltratem fisicamente o bicho. Flagrantes do uso de esporas e de qualquer outro objeto pontiagudo levam à desclassificações imediatas dos concorrentes.

Artefato de ouro
Ao jumento, a cangalha. Esta associação corriqueira no falatório sertanejo é seguida no Capim. O vencedor da corrida, o ápice da Jecana, recebe como prêmio a Cangalha de Ouro, uma miniatura do artefato de madeira acolchoado que é colocado sobre o lombo do animal para pendurar carga dos dois lados.

Abrigo maior
A imagem do jumento está nacionalmente associada ao Nordeste. Dados do IBGE quantificam o que as artes e a rotina de sobrevivência dos moradores do Sertão e do Agreste, em especial, diziam. Dos quase um milhão de jegues contabilizados, cerca de 90% viviam na região, ou seja, 877 mil animais.

Perigo na estrada
De símbolo de resistência, os jegues se transformaram em riscos de acidente nas estradas depois de substituídos, nos últimos anos, por motos. Isso se traduz nos recolhimentos de animais soltos nas estradas federais pela Polícia Rodoviária. Em 2014, 462, menos de um terço de 2015, com 1.424. No ano passado, 1.653.

Negócio da China
No Nordeste, a carne de jumento é pouco apreciada, mas se fala em exportá-la para a China. A proposta, além das críticas dos defensores de animais, encontra obstáculo na estrutura de abate. Nenhum dos quatro abatedouros do Brasil fica na região. Há um no Rio Grande do Sul, um em Minas Gerais e dois no Paraná.

Desafiante da seca
Presente no Brasil desde a primeira metade do século 16, o jumento se adaptou de maneira rápida ao país. Tanto no Sul, região em que a expedição de Martim Afonso de Souza desembarcou os primeiros asininos em São Vicente, em 1534, quanto no Nordeste, onde os bichos, em estiagens, se alimentam de cactos e macambiras.