DIARIO NOS BAIRROS » O amor da vida de seu Vital Dona Severina Firmino de Barros vive há 56 anos casada com o personagem mais genuíno do Poço da Panela, seu Vital, o dono da venda do Poço

Silvia Bessa
silvia.bessa@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 20/04/2018 09:00

Ao final das palmas, seu Vital tenta roubar um beijo da boca de dona Severina. Ela se esquiva. Filhos e netos riem. É uma quase tradição esperada da festa de 1º de maio, data na qual os dois comemoram aniversário na residência que fica nos fundos da venda mais tradicional do Poço da Panela, Zona Norte do Recife. Na intimidade, um é complemento e admirador do outro. Com dona Severina de Barros, que detesta apelidos e com quem ele convive há 56 anos, seu Vital é “chorão”, diz a filha caçula, Angélica Barros. E gosta de rir ao lembrar da severa gagueira que foi embora não se sabe como, talvez por amor. Por dona Severina, aquela a quem ousa chamar de “Lina”, ele mostra uma face desconhecida, a do Vital amoroso: “É a criatura da minha vida”, afirma o comerciante Vital José de Barros, 77 anos. “A realidade é isso: se não fosse a grande mulher que é, eu não estava com ela. Já tinha desabado para um lado e ela para o outro”.

Por dona Severina, até concorda em ser fotografado, desfazendo parte do estereótipo de carrancudo que o tornou popular nas redondezas de Casa Forte. “Não, não. Casa Forte, não. Ele é conhecido no Recife inteiro e até na internet. Ele fala grosso, tem esse jeito, chama muito atenção e eu não me incomodo, mas o importante é que todo mundo gosta dele. Sabe por quê?”, pergunta, apressando-se em responder: “Porque ele é competente, é muito compreensivo e o melhor marido e pai que meus seis filhos e netos poderiam ter tido”, classifica dona Severina, ajudando a construir a imagem dele e fazendo devidas correções. Quando não é assim, serve de representante de seu Vital. Outro dia, surpreendeu-se. Foi receber uma homenagem de uma escola do bairro e ela própria foi reverenciada. “Me aplaudiram demoradamente. Parecia que eu era uma autoridade”. A reconheceram, por certo.

Tem quem creia que dona Severina Firmino de Barros, 80 anos, é eminência parda de um patrimônio vivo do Recife. “Muita coisa por trás de pai é mãe quem está. É basicamente parecido com o ex-governador Eduardo Campos. Ele gostava de política mas o crânio mesmo é a mulher dele”, diz o filho mais velho, Ricardo José de Barros, um dos seis da prole do casal. “Tanto é verdade que basta lembrar quem começou esta venda aqui. Foi ela, foi mãe”. Seu Vital tinha emprego fixo. Dona Severina começou a vender mantimentos numa época em que “o café era vendido a granel”.

“Tudo é sempre em torno dele, mas é muito grande o merecimento dela”, diz Angélica, psicóloga, lembrando da dedicação da mãe à educação dos filhos e das dificuldades que já enfrentou ao lado do pai, como as sucessivas enchentes das décadas de 1960 e 1970. “Numa enchente ficamos com a roupa do couro cheia de lama e as pessoas doaram tudo. Nem gosto de ver na televisão o que se passa com os outros”, recorda dona Severina, tendo seu Vital concordando com a cabeça.

É assim a sintonia deles desde que se conheceram em um domingo à noite no cenário da Praça de Casa Forte. “Com a gente não tem esse negócio de mentira, de dizer que é uma coisa e é outra. Nem tem arenga”, afirma ele.  Quando novo, seu Vital estava de olho mesmo era na irmã de dona Severina. “Nunca me arrependi”. A irmã de dona Severina reclama por ter perdido aquele que se tornou o melhor genro de seu Miguel, pai das moças - agora senhoras. Hoje eles esperam o sono do outro, fazem compras para a venda juntos, ele fica nervoso quando ela passa das 8h ao voltar da caminhada matinal, ela o influencia sobre os amigos para quem ele empresta dinheiro. E poucos sabem mas ela carrega a fama de durona. “Melhorou, está ficando mansinha que nem um cordeiro, mas ainda é brava”, revela seu Vital.

Vivem como gostam. Juntos são o que há de mais genuíno na Zona Norte do Recife. Vendem da cerveja à caixa de fósforo, o pastel novinho “cheirando a leite”, o pão fresco. Quando o cliente era o “finado Walfrido” até os filhos dele. Seu Vital e dona Severina são daqueles hoje singularíssimos cidadãos que dão informações sobre endereços com satisfação (“tem gente que bate aqui com tudo fechado para eu ensinar e eu acho maravilhoso poder ajudar”).

Dona Severina é a mulher que gosta de carnaval e que encanta seu Vital com a galinha de capoeira do domingo para agradar a família e com a parceria. É a anfitriã que fica por trás do balcão na venda de seu Vital, um lugar que recebe sem luxo e sem wi-fi, na calçada, sem fazer distinção entre o pedreiro, o desempregado e o desembargador.