Palhaçada macabra Com criaturas medonhas presentes tanto em produtos da cultura pop quanto espaços públicos pelo mundo, realidade e ficção parecem se misturar

Fellipe Torres
fellipe.torres@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 10/12/2016 03:00

Máscaras usadas no Dia das Bruxas se tornaram acessórios frequentes (Reprodução da Internet/fingeronwealth)
Máscaras usadas no Dia das Bruxas se tornaram acessórios frequentes

Embora tenha tomado proporções globais nos últimos meses, a proliferação de pessoas fantasiadas de “palhaços assassinos” não é necessariamente novidade. Casos assim já estamparam o noticiário norte-americano nos anos 1980, quando personagens desse tipo eram recorrentes na indústria cinematográfica dedicada a filmes de horror.

O Brasil também tem a sua parcela de disseminação do medo, mas com outro viés. Em meados dos anos 2000, em pequenas cidades do interior de Pernambuco, surgiram relatos de homens vestidos de palhaços para capturar crianças, retirar órgãos das vítimas e vendê-los. A história - nesse caso, uma lenda urbana - é semelhante a uma outra, popularizada uma década antes entre os moradores de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo. O pânico do Sudeste havia migrado para o Nordeste.

Enquanto a lenda ganhava força no Interior, atores profissionais encontravam dificuldade para levar adiante o trabalho como animadores de festas infantis. Na capital, durante apresentação em um projeto ligado à Igreja, a trupe da qual fazia parte Dodi Fontes, o Palhaço Bituca, era alvo de olhares atravessados de mães preocupadas. Nenhuma delas saiu de perto da prole antes de os artistas deixarem o local.

O episódio, ocorrido na década passada, é apenas um dos muitos contratempos enfrentados nos 25 anos de existência do personagem. “Tanto em eventos maiores quanto em festinhas de aniversário há crianças com receio de se aproximar, adultos com muito medo. Só pelo olhar deles a gente consegue perceber”, revela o animador. “Há vários linhas de palhaço e cada um trabalha com determinadas esquetes. Alguns usam o barulho e o susto, algo capaz de desencadear um trauma infantil”, completa.

A atriz Laura Muniz corrobora a necessidade do tato para a atividade. Para ela, cuja identidade secreta por muitos anos foi a de Palhaço Bolota, muitos colegas apostam no grito e no estardalhaço. “É preciso entrar macio, sorrindo, para não espantar”. Com 27 anos de experiência, ela abandonou o personagem Bolota há uma década, em um cenário cada vez mais desfavorável para os palhaços menos famosos, na avaliação da artista. “Há 20 anos, era comum o medo de alguns crianças, sim. Hoje, elas adoram zumbis, vampiros, monstros. As festas infantis mudaram muito, têm mais espaço para recreadores, brinquedos, outras atrações”, atesta Laura Muniz.

Sobre a recente onda de pessoas vestidas de palhaços assustadores em vias públicas, Dodi Fontes demonstra preocupação relativa a quem faz graça como ganha-pão. Muniz é mais enfática, ao classificar a brincadeira de “terrorismo” praticado por “um bando de loucos varridos”. As aparições ganham lastro na ficção: além da mais de uma centena de longas-metragens com palhaços assustadores lançados nas últimas décadas, novos projetos estão no horizonte de Hollywood. O mais famoso vilão desse subgênero, Pennywise, surgirá em 2017 em remake do filme A coisa, com visual repaginado e bem mais assustador.

CASOS DA VIDA REAL

O primeiro caso notório de um crime associado a um palhaço foi em 1836, quando o artista francês Jean-Gaspard Deburau, vestido de pierrô, atingiu um garoto na cabeça com sua pesada bengala, matando-o. A motivação do crime teriam sido insultos por parte da criança. Deburau foi preso. Mais recentemente, o serial killer John Wayne Gacy Jr. Passou a fazer parte do imaginário popular, tamanha a repercussão de seus crimes. Também conhecido como Palhaço Assassino, Gacy cometeu ataques sexuais contra adolescentes na década de 1960 e foi condenado por sodomia. Ao sair da prisão, passou a se vestir de palhaço para entreter crianças em festas e hospitais, em supostas ações de caridade.

No mesmo período, esfaqueou e enforcou vários jovens, cujos corpos eram enterrados no terreno da própria casa de Gacy. Foram 33 vítimas fatais. John Gacy foi condenado à pena de morte. A sua imagem foi vastamente explorada pela televisão e pelo cinema. Entre os filmes baseados na história dele, estão To catch a killer (1992), Dear Mr. Gacy (2010), Dahmer vs. Gacy (2010), 8213: Gacy house (2010). No subúrbio de Chicago (cidade natal de John Gacy), nos EUA, o centro de entretenimento Robie Zombie’s Great American Nightmare - cuja especialidade é a atração no formato “casa dos horrores” - tem um espaço todo dedicado ao serial killer. O empreendimento tem sido duramente criticado por familiares das vítimas.

DISFARCES PARA COMETER CRIMES


A maquiagem carregada ou a utilização de máscaras é uma solução óbvia para esconder a identidade de criminosos em potencial. Em alguns casos, o susto causado nas vítimas surge como um bônus. Há pelo menos uma dezena de filmes cujos enredos trazem esse tipo de palhaço circunstancial, a maioria deles lançada nas décadas de 1970 e 1980. O personagem mais famoso talvez seja Michael Myers, da aclamada franquia de terror Halloween. No longa A noite do terror (1978), com apenas 6 anos de idade Myers se fantasia de palhaço para o Dia das Bruxas e comete seu primeiro crime: mata a irmã esfaqueada.

Outros filmes:


Terror on tour (1988) – Músicos se apresentam com maquiagem de palhaço e simulam assassinatos. Durante os shows, alguém com a mesma caracterização comete crimes reais.

Out of the dark (1988) – Além de se vestir de palhaço, Bobo atua como um durante os assassinato, brincando com as vítimas.

PALHAÇO PROFISSIONAL E CRIMINOSO


Antes de mais nada, ser palhaço é um meio de vida. Pessoas com essa profissão - assim como quaisquer outras - estão sujeitas a cometerem crimes e serem descobertas. Esse viés mais realista é explorado no longa-metragem Blood harvest (1987), cujo enredo conta a história de Mervo, palhaço de uma pequena cidade norte-americana. Ele se torna o principal suspeito de uma série de assassinatos - as vítimas eram penduradas pelos pés e degoladas. Sem nunca tirar a maquiagem de palhaço e dono de uma voz fina, Mervo é naturalmente assustador.

A transição de palhaço para assassino é o ponto em comum com o longa 100 tears (2007), cujo protagonista é Gurdy, atração de um circo itinerante. Ao se envolver em intriga entre colegas de profissão, mata brutalmente o “homem forte” do circo e a sua esposa. Em seguida, ele foge e se torna o assassino em série conhecido como Teardrop Killer. De porte físico avantajado e sem falar nada, o palhaço promove matança por mais de duas décadas.

MONSTROS, DEMÔNIOS, ZUMBIS


Quando a intenção é se aproveitar de fobias guardadas no imaginário coletivo, não é preciso muita justificativa para evocar a figura de um palhaço. Muito menos para mixá-la com outras criaturas medonhas. Não é de se estranhar a existência de palhaços-vampiros em Hellbreeder (2004), de palhaços-demônios em Kill joy (2000) ou de palhaços-zumbis em Dead clows (2004), Terra dos mortos (2005).

LOUCOS MAQUIADOS

Transtornos psicológicos ou doenças mentais são argumentos utilizados com alguma frequência pela sétima arte para justificar matanças causadas por alguém vestido de palhaço. Essa é a premissa de Maniacal (2003), sobre um jovem perturbado devido a “estranhos carinhos da mãe”. Ele foge de instituição mental, rouba uma máscara de palhaço e sai para uma noite sangrenta. O longa britânico Clown around (2011) tem enredo semelhante: um paciente catatônico foge de um manicômio, encontra uma máscara de palhaço.

Outros filmes:

Fear of clowns (2004) e Fear of clowns 2 (2007) – No primeiro, um psicopata é persuadido por seu psiquiatra a se vestir de palhaço, perseguir e matar a sua esposa. Termina preso. No segundo, o personagem foge e se une a outros dois palhaços: um estuprador e canibal e um assassino esquizofrênico.

Palhaço assassino (1989) – Bippo, Dippo e Cheezo matam palhaços do circo local e reproduzem com exatidão a maquiagem das vítimas. Os três, na verdade, são fugitivos de um sanatório.

LITERATURA COMO FONTE DE PALHAÇOS ASSASSINOS

Palhaços já foram descritos como criaturas desajustadas em obras como As aventuras do Sr. Pickwick (1836), de Charles Dickens, considerado o criador do palhaço assustador. No livro, um ator decadente, doente e enlouquecido vaga pelas ruas de Londres com trajes circenses. No conto Hop-Frog of the eight chained ourang-outangs (1849), de Edgard Allan Poe, um bobo da corte arma situação para queimar o rei vivo e escapar da tragédia como inocente. Mas o personagem do gênero com maior destaque na literatura foi criado por um autor contemporâneo: Stephen King. 

O livro It (1986) introduziu a figura conhecida como “A Coisa”, combinando elementos como lembranças, traumas de infância e horror em pequenas cidades. A história foi adaptada para o cinema em 1990 e vai ganhar uma nova versão em setembro de 2017. Outros livros a abordarem palhaços assassinos foram The Pilo Family circus (2006), de Will Elliott), e The grin of the dark (2007), de Ramsey Campbell.

Já nos quadrinhos, um dos vilões do Batman, o Coringa, é um caso à parte, conhecido como Príncipe Palhaço do Crime.