Literatura como debate de múltiplas identidades O escritor paraibano Cristhiano Aguiar, autor de Gótico Nordestino acredita que a literatura precisa surgir em um espaço de liberdade criativa absoluta

Múcio Aguiar
mucio.aguiar@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 20/01/2023 00:30

Integrando uma nova geração de escritores, o paraibano Cristhiano Aguiar vem ganhando destaque no mercado literário brasileiro. Com o Gótico Nordestino, em 2022, ganhou o primeiro lugar na categoria de contos da Biblioteca Nacional. Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde atualmente leciona no curso de Letras, tem no seu currículo passagem pela Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, onde em 2012 foi pesquisador visitante. Ainda nesse ano foi eleito pela revista de literatura ‘Granta’ um dos 20 melhores jovens autores brasileiros durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Cristhiano aceitou o convite para uma entrevista com o Diario de Pernambuco.

ENTREVISTA - Cristhiano Aguiar // escritor

DP - Você faz parte de uma nova geração de autores, em que você diferencia essa nova geração das anteriores?

Cristhiano - Uma parte da resposta à sua pergunta consiste em entender de que forma a experiência social e cultural de quem faz a literatura brasileira, hoje, se diferencia da vivência dos nossos grandes cânones modernistas, ou do século XIX... Nos últimos anos, nossa literatura contemporânea tem se destacado pelo debate sobre múltiplas identidades, que se relaciona com uma vocação importante da nossa prosa, a do comentário e crítica sociais. Há um viés disto que se reflete em Gótico Nordestino, pois os meus contos propõem um debate, lateral, porém presente, sobre o Nordeste, sobre uma imaginação possível para o Nordeste. Além disto,autores/autoras da minha idade, ou mais jovens, transitam muito à vontade entre uma sensibilidade pop e um repertório considerado típico da cultura literária letrada. Para outros autores e autoras, e isso pode ser um diferencial ainda mais acentuado em relação a gerações anteriores. Este foi um dos objetivos de Gótico Nordestino, aliás: encontrar qual era o lugar do conto fantástico do século XIX em um projeto literário para o século XXI.

DP - Um dos mais importantes escritores brasileiros, o paraibano Ariano Suassuna foi idealizador do Movimento Armorial, na década de 1970. O Gótico Nordestino é uma releitura, uma atualização do que o movimento pensou para a literatura?
Cristhiano - Sou um admirador de Ariano Suassuna e do Movimento Armorial. É uma admiração tensa, pois estabeleço consideráveis ressalvas com a sua forma de interpretar o Brasil, mas isto não me impede de identificar afinidades que ecoam em Gótico Nordestino. Prova disto é que a capa do meu livro, criada por Kiko Farkas a partir de uma gravura de Samico, me parece traduzir bastante o que meu livro é. Em 2022, meses depois de meu livro já ter sido lançado, eu folheei a edição mais recente do Romance da Pedra do Reino, de Ariano, e reencontrei esta influência: até as onças, animal que aparece com destaque nos meus contos, estava lá! Eu admiro Ariano por propor, na ficção e no teatro, uma leitura não realista do Brasil. Portanto,narrar nossa experiência cultural e histórica através da imaginação, muitas vezes fantástica, é algo que nos aproxima. Também gosto do humor dele e, por incrível que possa parecer, vejo um tanto deste humor em Gótico Nordestino. As referências a Bíblia são uma afinidade também, bem como o gosto pela literatura medieval, pela cultura barroca e pela cultura popular. Por outro lado, vejo uma dimensão regionalista em Ariano, em especial nas palestras que ele ministrava, com a qual discordo. Simplesmente não consigo concordar com a visão que ele esboça sobre os alicerces da identidade nordestina, ou a maneira como ele conduziu o debate sobre cultura popular e identidade nacional ao longo das últimas décadas.

DP - No Gótico Nordestino alguns contos relembram a nossa realidade social. Ao trazer essas realidades, seu objetivo é fazer da literatura um instrumento de transformação, de denúncia ou trabalhar o cotidiano como cenário?

Cristhiano - A literatura, assim como toda a arte, precisa surgir em um espaço de liberdade criativa absoluta. No entanto, não criamos arte no vácuo, no vazio.(...) Gótico Nordestino foi escrito na chave da literatura fantástica e, dentro do fantástico, com forte influência das estéticas do horror. Não me interessava mais narrar a vida cotidiana por si só. Trabalho na perspectiva de reimaginar a realidade cotidiana, inserindo, à medida que minhas histórias avançam cada vez mais estranheza. Dentro da estranheza, construo imagens perturbadoras, bem como uma poesia inquietante, a fim de proporcionar sensações insólitas a quem me lê.

DP - Em uma entrevista publicada no Estadão você diz que influência místico-fantasmagórica de sua obra, escrita em 2019, corresponde a realidade da pandemia do Covid-19. Os escritores pernambucanos, do século XIX, como Carneiro Vilela e Gilberto Freyre influenciaram essa obra?

Cristhiano - Gilberto Freyre se consolidou como um clássico do nosso pensamento social, uma figura incontornável para pensarmos o Brasil. Um livro de Freyre foi muito importante para Gótico Nordestino: Assombrações do Recife Velho, no qual reconta uma série de episódios fantasmagóricos do Recife. Recomendo demais este livro às leitoras e leitores do Diario de Pernambuco.  

DP - Suas raízes culturais transitam entre a Paraíba e Pernambuco. Em Gótico Nordestino onde encontramos cada um?

Cristhiano - Do início ao fim do livro, pois fiz questão de que os nove contos de Gótico Nordestino fossem ambientados em cidades, reais, ou imaginárias, do Agreste e da Zona da Mata da Paraíba e de Pernambuco. É com este livro, me ocorre agora, que assumo minha identidade em trânsito, metade paraibana, metade pernambucana. Ao mesmo tempo, o meu Nordeste, a Paraíba e o Pernambuco que escrevi no meu livro, não existem. É uma ficção delirante, que quer de alguma forma lidar com questões existenciais das minhas personagens, por um lado, e problemas históricos da nossa nação, por outro.