Premiação reflete as tensões do mundo "Um Simples Acidente" prevalece na Palma de Ouro, em uma disputa competitiva acompanhada de perto pelo Diario de Pernambuco

André Guerra

Publicação: 26/05/2025 03:00

O grande vencedor é mais uma produção que busca denunciar o regime iraniano, tendo o diretor já sido pre (NEON/DIVULGAÇÃO)
O grande vencedor é mais uma produção que busca denunciar o regime iraniano, tendo o diretor já sido pre

Estava difícil prever qual seria o grande vencedor da Palma de Ouro de 2025, especialmente em uma edição do Festival de Cannes em que várias possibilidades pairavam no ar entre as apostas e nenhum filme parecia ofuscar completamente os demais, como já ocorreu em anos anteriores. O Agente Secreto era um dos mais cotados, tanto que se tornou o mais premiado da cerimônia, mas o grande escolhido pelo júri foi o iraniano Um Simples Acidente, dirigido por Jafar Panahi. Essa opção vinha sendo apontada pela imprensa como uma das mais prováveis por razões tanto fílmicas como externas e, dentre os 22 candidatos, foi uma decisão acertada.

Gravado clandestinamente, assim como várias outras produções recentes que denunciam o regime do Irã, o filme que prevaleceu com a Palma trata de um homem em busca de vingança contra o seu torturador, a quem ele convictamente reconhece nas ruas do Teerã e resolve raptar. O encontro, porém, abala essa convicção e, junto a outras vítimas de violência do estado, ele entra em uma jornada para tirar à limpo a verdade sobre a identidade do homem que acabou de sequestrar. A situação ganha ares de humor declarado, mas, à medida em que o assunto político se intensifica, o diretor mergulha o espectador na angústia moral dos personagens, culminando em um terceiro ato que calou completamente a plateia do Grand Thèatre Lumière, em sessão de estreia que contou com a presença do Diario, que cobriu o evento na Riviera Francesa.

Esta foi a segunda produção iraniana a vencer a Palma de Ouro (28 anos após o diretor Abbas Kiarostami levar o prêmio por Gosto de Cereja), e a sua vitória foi também uma mensagem política do júri de Cannes. Jafar Panahi foi preso mais de uma vez por protestos contra o sistema do seu país e seu filme anterior, Sem Ursos, venceu o Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza de 2022, sem a sua presença. O lançamento ovacionado de Um Simples Acidente marcou a primeira vez que ele comparece a um festival com um filme desde que foi solto da última prisão. 

As muitas qualidades do longa em si, que reúne várias das características marcantes do realizador (planos longos e com poucos movimentos, mistura precisa de humor absurdo com drama realista e a contextualização política sempre latente), também justificam a escolha de Juliette Binoche e do corpo de jurados, mas ficou evidente que a premiação quis valorizar toda a bagagem simbólica que o projeto de Panahi traz consigo.

O mais aplaudido nesta edição de Cannes, Sentimental Value, do norueguês Joaquim Trier, sobre uma complexa tentativa de reconexão de pai e filhas através do cinema, levou o Grand Prix, o equivalente ao segundo lugar. O fatalista suspense franco-espanhol Sirat, de Oliver Laxe, sobre um pai em busca da filha numa rave no Marrocos, e o contemplativo drama alemão Sound of Falling, de Mascha Schilinski, que segue quatro gerações de mulheres em uma triste casa na zona rural, dividiram o Prêmio do Júri, equivalente ao terceiro lugar.

O ambicioso e abstrato chinês Resurrection, de Bi Gan, conseguiu uma menção honrosa, o Prêmio Especial do Júri, enquanto o prêmio de Melhor Interpretação Feminina ficou com Nadia Melliti, do bonito drama francês La Petite Dernière. Figuras tarimbadas em Cannes, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, fecham a lista de premiados levando a categoria de Melhor Roteiro com o filme Jeunes Mères, um dos menos comentados ao longo do festival.

Nos últimos anos, o festival vem sofrendo algumas críticas por uma excessiva interseção com o Oscar, inclusive com um alto número de filmes falados em inglês. Neste ano, nenhum dos aguardados filmes hollywoodianos da seleção competitiva saiu premiado: Die, My Love, Eddington, The History of Sound, The Mastermind e O Esquema Fenício ficaram a ver navios — em um festival que conciliou o frevo da Croisette com a seriedade da produção iraniana.